bolsonaro

É desesperador. Para mim e para minha tribo, as notícias não são boas. O conselho do momento é manter a esperança, a fé de que dias melhores virão, apesar dele, de você, das circunstâncias.

Escrevo agora porque o amanhã é incerto. O desconhecido causa estranheza, provoca temores irracionais. Não tenho certeza se terei, ao longo do próximo mandato, a liberdade que tenho hoje de expressar estas ideias. Será que voltaremos àquele tempo vazio do jornalismo opinativo, motor principal que move tantos endereços eletrônicos e demais mídias contemporâneas, e escreveremos receitas de bolo?

Insisto em dizer que é desesperador a experiência de limitações de liberdades, principalmente para quem nasceu no raiar da democracia e cresceu assistindo e se incorporando às lutas por direitos e melhorias de políticas públicas.

Imagine como é exasperante não poder usar um de seus membros, como o braço, por conta de uma fratura. Perde-se a liberdade de fazer tarefas simples. Incessante monitoramento para não se movimentar bruscamente, controlar respiração, tosses. Reeducar a si mesmo para dormir na única posição possível. Roupas apenas as que são práticas. Repouso absoluto e banho de sol. Parece uma prisão, não?

A instalação de um regime autoritário, revestido com uma embalagem bonita e colorida de democracia, não se trata de uma fratura simples. É a ruptura de tudo que esse país sonhou décadas antes e do que nossa gente construiu nos últimos anos.

No início deste 2018, havia achado absurda a declaração do presidente daquele partido que se diz Trabalhista Brasileiro. Por ocasião da resistência nas redes sociais e em vários setores da sociedade, sua filha, que estava cotada para assumir o Ministério do Trabalho, precisou ser descartada pelo presidente Michel Temer (MDB). Naquele momento, o pai e dirigente partidário disse que a Justiça do Trabalho era a excrecência. Ontem, fiquei horrorizada ao ver que o presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) extinguirá este ministério.

O presidente eleito não esperou janeiro chegar. Anunciou para seus eleitores, que não haverá mais o Ministério do Trabalho em um país com 12 milhões de desempregados e que ainda está se adaptando à nova realidade da legislação imposta naquela re(de)forma, que legitimou a precarização do trabalho.

Minha avó dizia: depois da queda, o coice. Cada indivíduo é um mundo e ele integra a sociedade. É desesperador lidar com a limitação física provocada por uma fratura e ainda descobrir que ela não está se regenerando. A solução será uma nova cirurgia. Vão por um enxerto para “colar” o osso. Um remendo doloroso que será extraído do quadril para consertar o que insiste em não curar. Me sinto deveras doente e meu quadro se agrava quando vejo que a sociedade também padece.

O adoecimento social que acomete nosso país tem sintomas crônicos: escancaramento do preconceito, da discriminação contra as minorias; a ode à lei do olho por olho, dente por dente; a sensação de insegurança e de apatia política; as mídias que retroalimentam sentimentos anômicos. Destaco esse último como um dos mais importantes, pois este me parece ser a energia essencial que resultou na ascensão de Bolsonaro.

Estamos vivendo um tempo cada vez mais individualista, que se pretende ter respostas e soluções rápidas e que não tolera frustrações. Aliás, estas causam revoltas, principalmente na juventude. E olha que a juventude brasileira foi a mola propulsora de Jair Bolsonaro.

O pesquisador paraibano, doutor em Psicologia Social, Nilton Formiga, define muito bem esse processo de adoecimento. Em meio às investigações sobre as causas da violência juvenil, ele disserta sobre alguns conceitos importantes. A violência, que insistem em por na conta do jovem preto e pobre ( é só observar as estatísticas de homicídios e prisionais), não tem cor, não escolhe gênero, nem muito menos classe social. Ontem mesmo vi carros de luxo de um superempresário branco serem bloqueados pela Justiça por conta de um crime contra o patrimônio público e por atentar contra a harmonia e a autonomia de um município.

Formiga explica que condutas desviantes “não têm identificado autor e rótulo social específico”, são “condutas bastante variadas e apesar de evidentes, elas podem se apresentar como uma conduta antissocial e/ou delitiva” e que “tais condutas referem-se aos comportamentos que não estão de acordo com os códigos estabelecidos pelas autoridades de determinado espaço geográfico e com os preceitos morais socialmente estabelecidos, infringindo simultaneamente códigos de conduta moral e social”.

Essa conduta antissocial é simplesmente não ter noção de normas que devem ser respeitadas, “desde a norma de limpeza das ruas ao respeito com os colegas no que se refere a certas brincadeiras”, e que causam incômodo. Já as delitivas, aquelas que transgridem efetivamente as normas de convivência e bem-estar social, os crimes. Vejamos o que diz Formiga:

“A ênfase e constância de um fenômeno deste tipo e com uma força de ação tão grande entre os jovens é típico de uma sociedade que têm suas crenças, valores e normas sociais fragilizadas, bem como, a identificação fissuradas ou fluidez nas ações das instituições responsáveis pelo estabelecimento e manutenção da transmissão da conduta socialmente desejável. Essa condição revela características sociais e comportamentais que salientam, não apenas no delinquir juvenil, mas, uma desestruturaçãe descrédito do poder disciplinar das instituições normativas e formadoras da conduta juvenil (por exemplo, família, escola, etc.), mas também, um amplo individualismo e egoísmo nas relações interpessoais, bem como, a dissolução do poder socializador dessas instituições quanto à transmissão da conduta socialmente desejável, indicando assim, um tempo de anomia. Este estado de anomia segue um caminho de caos social”.

Bolsonaro é fruto dessa anomia social. Formiga traz em seu estudo o conceito de anomia concebido por Leo Srole (1956): um estado mental, um sentimento de desespero e de abandono que acompanha o sujeito, o qual se deve à falta de acesso aos meios socialmente prescritos para a realização dos fins sociais.

O futuro superministro da área econômica estava por esses dias pedindo para que o Congresso fosse pressionado para aprovar “qualquer coisa” da reforma da Previdência. Esse papo de qualquer coisa em uma área tão sensível é a prova de que Paulo Guedes está bem para lá de Marrakesh. É mexer qualquer coisa, parece doido, mas é qualquer coisa dentro da pretensa reforma que nem mesmo ele está entendendo o que deve ser aprovado.

E quando a gente lembra daquele juiz suprassumo da ética e moralidade, incorruptível e inflexível com acordos escusos, que ousou escrever seu nome na história como aquele que condenou e decretou a prisão de um ícone político pop e que despretensiosamente aceita abandonar sua carreira jurídica para ser político ministro? 2020 virá.

Diante deste quadro, será que estamos preparados para consertar nossos próprios erros? Nossa democracia, nosso sistema político, não suporta mais remendos. Diferentemente da minha fratura umeral diafásica aparentemente simples e deficitária de cálcio, o Brasil precisa resistir, precisa lutar para não chegar a uma UTI. Não deixe a guerra começar.