Bertolucci: um épico no auge do capitalismo

A morte nos roubou neste 26 de novembro a permanência física finita do cineasta italiano Bernardo Bertolucci. A vida, no entanto, tornará permanente entre nós a sua presença-símbolo de obra ilimitada em busca da arte que se quer a mais.

Bertolucci foi um artista filho de poeta e de professora que emergiu no cinema italiano vindo de uma propensão inicial à poesia de forma textual para se encontrar alquimista visual como assistente de Pier Paolo Pasolini em “Accattone” (1961). Tinha, então, 20 anos.

A filmografia que ele nos deixa aos 77 anos é plural, contrastada, transe bem marcado entre o épico (“1900”), o lirismo (“Os sonhadores”), a psicanálise (“La luna”, “O último tango em Paris”) e a política (“O conformista”). E há mais, do bem, do mal e do mau, e do sentir, do não querer e fazer, há mais de onde veio isso tudo que é obra-prima.

Bertolucci com seus filmes faz legítima reivindicação da visualidade cinematográfica enquanto busca autoral de novas respostas a indagações de sempre sobre cismas da história (para além do descritivo fenomenológico), o porquê do mal-estar da civilização (o trauma além da alma), os sentidos da poesia (conceito, processo, compromisso) e as razões da modernidade (arbitrariedades do signo, comunismo, mutações do sujeito, ímpetos revolucionários, burguesismo,  historicidade, psicodelícias…).

Nos anos 1970, Bertolucci escandaliza o mundo com o “O último tango em Paris”. O filme é reflexão poderosa sobre as camadas de energias, atitudes e buscas que nos (de)compõem. Na história. Frente ao espelho. Na memória esfiapada dos dias cinza.

Fala de gente em colapso. Da ansiedade a bordo do ideal que espinha e fere.  Do ser para o outro na anomia da coletividade maquínica. Ser à deriva batendo as calçadas do tédio.

Reflexão amparada na ideia do desejo como “isso” formulador da individualidade, o que plasma o impulso que se desdobra em ato são, também em abismo.  O erótico, natureza ritualizada, à caça das zonas de conforto e equilíbrio para além dos pactos convencionais da racionalidade operativa do cotidiano.

A sexualidade crua, antes ousada e provocativa, hoje tida por inconsequente queda adolescente – problemática sanha invasiva que soa como metáfora da sujeição, da violência, do aleatório autofágico persiste como reverência ao conflito e ao confronto nos anos 1970 da contracultura em purgação.

Bertolucci estabelece uma nova cartografia do espaço cinematográfico agindo como o narrador épico por excelência. Em “1900”, o sentido da epopeia é ressignificado a partir de um interessante diálogo entre a panorâmica fílmica descritiva e a panorâmica de acompanhamento em movimentos que experimentam a perspectiva florentina em princípios do século XV: inovação e transformação numa só cápsula. Forma simbólica porque funcional. Mas funcional porque simbólica.

O fluxo do olhar nesse filme, repleto de âncoras especiais de atração para operações mentais e sensíveis na fruição da imagem, sintetiza a grandeza do designer que foi acusado de burguês por força da impregnação sensual das imagens entre a decadência e o mítico e a permanência desse que foi um grande criador do século XX. Brunelleschi não teria trabalhado melhor a herança renascentista da arte italiana projetando-a para a entropia da pós-modernidade. Bertolucci, um épico no auge do capitalismo, disse muito e certo sobre as incertezas dos nossos dias.