Barbárie de Queimadas: sobrevivente fala pela primeira vez sobre estupro coletivo

Priscila Frazão Monteiro era o alvo sexual dos acusados pela Barbárie de Queimadas. Mas todas seriam vítimas das “brincadeira” e do “presente de aniversário”. Durante todo o crime, Priscila esteve amedrontada, mas atenta. Ouviu quando a irmã reconheceu Eduardo dos Santos Pereira e pediu que ele parasse. No dia seguinte, Priscila velava a irmã e contribuía de forma decisiva para as investigações da Polícia Civil. Ela falou pela primeira vez, onze anos após o crime, no programa Linha Direta desta quinta-feira (11).

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“Não é fácil. Ao mesmo tempo que eu estava velando a minha irmã e a minha amiga, eu tinha que ser forte para relatar tudo que aconteceu de uma forma que eles, enquanto Polícia Civil, acreditassem em mim e fossem prender todos que tinham feito aquilo com todas nós”, desabafa Priscila Frazão.

A motivação e a sequência do crime só foi desvendada porque Priscila resolveu falar.

Estupro coletivo pelo olhar da vítima

O estupro coletivo de Queimadas, planejado como um presente de aniversário, fez cinco mulheres vítimas, duas delas também mortas no dia 12 de fevereiro de 2012. Mas vitimou uma cidade inteira.

Priscila Frazão foi uma das vítimas da barbárie. Há 11 anos, ela entrava na garagem da casa de Eduardo, irmão do aniversariante Luciano dos Santos, para comemorar o aniversário. Michelle e Izabella chegariam logo depois.

“O portão da casa dele estava totalmente aberto, só com o carro com a traseira aberta e o som ligado para dentro da casa”, relata Priscila. Em certo momento da noite, todas as luzes foram apagadas.

Em certo momento, Eduardo foi fechando o portão, conforme conta Priscila, e outros foram entrando encapuzados e anunciando um assalto.

“Uns usavam máscara preta, luvas pretas e outro [estava] usando máscara de carnaval. A gente correu, todo mundo, para trás. Eu, minha irmã e Michelle. E eles foram atrás da gente. Mandaram a gente sentar todos no chão, e começaram a encapuzar e a colocar o ‘enforca-gato’ nas mãos”, detalha.

Barbárie de Queimadas: acusados usavam máscaras pretas e, um deles, máscara de carnaval — Foto: Reprodução/TV Globo

Barbárie de Queimadas: acusados usavam máscaras pretas e, um deles, máscara de carnaval — Foto: Reprodução/TV Globo

Numa tentativa de conseguir de soltar depois, Priscila separou um pouco as mãos no momento que a prenderam. Em todo seu relato, Priscila lembra, numa tentativa de se desculpar por algo que não tem controle ou qualquer culpa, pela incapacidade física de agir ou ajudar. Com as mãos amarradas e a boca amordaçada, Priscila só conseguia rezar.

Com a venda um pouco baixa, ela conseguiu ver algumas coisas que aconteciam na casa. “Quando eles levaram ela [Izabella], eu vi que ela se debatia muito, mas eu só escutava o murmúrio. E não tinha como fazer nada”.

Todas as mulheres que estavam na casa, com exceção da esposa de Eduardo e da namorada de Luciana, sofreram abusos.

“Eles me pegaram e levaram para dentro de casa. Eu ouvi quando minha irmã disse assim: ‘Eduardo, não, pare que mainha não vai gostar disso’. Eu ouvi e foi bem agoniante para mim. Eu não tinha forças nem para ajudar minha irmã, nem ajudar Michelle. Eu também estava ali”, desabafa.

Nesse momento, Priscila já sabia que Eduardo Pereira dos Santos, com que a irmã dela, Isânia Frazão Monteiro, foi casada, e quem conhecia há muitos anos, estava envolvimento no assalto forjado e nos estupros praticados.

“Eu rezava em voz alta, eles me agarrando e me chamando de safada. Foi no momento que eu tentei e consegui soltar as minhas mãos. Comecei a me debater e como eu entrei em luta corporal com eles, eles me deram uma coronhada na cabeça. Eu caí no cantinho do quarto. E quando eu caí, fingi que estava desacordada”, conta Priscila.

Quando percebeu que a casa já estava em silêncio, Priscila saiu de onde estava e tentou encontrar Izabella e Michelle. Procurou por todos os cômodos e não encontrou. Foi quando saiu para os fundos da casa e se deparou com Lilian, esposa de Eduardo, e Sheila, namorada de Luciano. Intocadas. “Elas estavam como se nada tivesse acontecido com elas”, revela Priscila.

Quando percebeu que a irmã e a amiga não estavam na casa, Priscila correu pra rua e se deparou com Eduardo entrando na casa. “Quero sabe onde estão Ju e Michelle. Cadê Ju e Michelle, Eduardo?”, indagou.

Sem respostas, correu para casa. “Desesperadamente”. “Na minha cabeça, eu já sabia que era ele e que eram os outros meninos que eu tinha reconhecido. Eu disse a mainha: ‘assaltaram a casa de Eduardo e levaram as meninas. Eu sei quem foi, mas vamos achar as meninas’. Minha preocupação era acharmos elas e elas estarem bem”, diz Priscila.

Priscila, Michelle e Izabella, vítimas das Barbárie de Queimadas — Foto: Reprodução/TV Globo

Priscila, Michelle e Izabella, vítimas das Barbárie de Queimadas — Foto: Reprodução/TV Globo

A partir daí, Priscila Frazão Monteiro tem participação direta na investigação policial. É ela a responsável por levar a polícia aos endereços dos acusados um dia após o crime.

“Lembro que ela ficou dentro de um veículo com a nossa equipe de investigação. E a maior dificuldade era de que a vítima sentisse segurança e passasse aquelas informações para a polícia”, relata a delegada do caso, Cassandra Duarte.

Não deu tempo Priscila pensar. O sentimento ainda era de tristeza, revolva e luto. “Na hora eu estava com sentimento de perca, estado de choque e eu queria justiça. Parecia coisa de outro mundo. Quando saí lá da Central, desceram vários carros para Queimadas. Eles me colocaram colete a prova de balas. E aí foram prendendo um por um”, lembra Priscila.

Informações estatísticas dão conta que 8 em cada 10 estupros são cometidos por conhecidos das vítimas. Foi o caso do estupro coletivo de Queimadas.

“A gente tinha um carinho muito grande pelo filho dele. O filho dele chamava a gente de tia. E mainha era vovó Fátima. Mainha tinha um carinho muito grande por ele também. O cuidado e carinho que a gente tinha pelo filho dele, ele não pensou pela filha de mainha, nossa irmã, por a gente enquanto amiga”, desabafa Priscila. 

Isânia Frazão Monteiro, irmã de Priscila e Izabella — Foto: Reprodução/TV Globo

Isânia Frazão Monteiro, irmã de Priscila e Izabella — Foto: Reprodução/TV Globo

Isânia, outra irmã de Izabella e Priscila, assumiu uma luta constante para combater a violência contra a mulher.

“Eu não queria estar aqui fazendo isso. Eu sei que, de alguma forma, expõe demais, expõe a minha imagem, me deixa, de certa forma, insegura. Mas nesse momento eu não posso me silenciar pelo meu sangue que foi derramado”, declara Isânia.

Para Priscila, a força que encontrou para conseguir falar sobre o caso vem da possibilidade sempre a vista de tentar diminuir o número de casos semelhantes.

“É difícil, enquanto vítima, ter que lutar por justiça, buscar a justiça, ter que reviver toda a cena do acontecido, é difícil enquanto vítima relatar várias vezes, mas é necessário. É necessário que a gente se fortaleça, relate, e busque por justiça. É muito importante que as mulheres possam ser fortes e se encorajem a buscar e lutar pela justiça. Fale, sem vergonha nenhuma, mas é preciso falar”, finaliza.

Barbárie de Queimadas aconteceu há 11 anos, no interior da Paraíba — Foto: Reprodução/TV Globo

Barbárie de Queimadas aconteceu há 11 anos, no interior da Paraíba — Foto: Reprodução/TV Globo. Do g1.