Atleta paraibana, Mayssa revela preconceitos sofridos durante sua carreira

A atleta paraibana, Mayssa Pessoa, em uma entrevista intitulada “Mayssa merece respeito”, concedida ao Uol, revelou os preconceitos, agressões e situações constrangedoras que sofreu por se homossexual. Multicampeã pela seleção brasileira de handebol, ela também já defende o Rostov, da Rússia.

Mayssa pediu para não ser mais convocada para defender a Seleção Brasileira desde 2017. O pedido, na verdade, parece ter sido um ato final. Acontece que ela alimenta ainda o sonho de disputar as Olimpíadas de Tóquio.

A Federação Internacional de Handebol respalda a ideia da paraibana. É que, após o período de três anos sem defender a seleção do seu país, quaisquer atletas ganham o direito de representar outra bandeira. Apesar do desejo de jogar em uma outra seleção, Mayssa ainda não divulgou por qual federação pretende atuar futuramente.

Confira entrevista de Mayssa na íntegra

Depois de uma partida nas Olimpíadas de Londres, em 2012, em que a seleção jogou contra o time de Montenegro e eu me saí muito bem em campo, nossa equipe de handebol foi dar uma entrevista para muitos repórteres. Um deles me perguntou, na lata: “Mayssa, você é homossexual?”.

A imprensa sempre olha a vida da gente, né? O que faz, o que deixa de fazer… Um ano antes, eu tinha sido madrinha de um torneio LGBTQ+ na França. Eu jogava em Paris, ainda não tinha assumido minha orientação sexual, mas a organização desse evento me convidou e eu topei participar. Mas ali, nas Olimpíadas, eu tinha acabado de sair de um jogo importante, com um bom resultado. E não queriam falar sobre esporte, só sobre a minha vida pessoal.

Eu era inexperiente, estava começando a me abrir, mal soube como responder aquela pergunta…

Achei uma falta de respeito, porque essa pergunta desviava completamente do assunto, que era o handebol. Não lembro o que respondi, mas não disse nem que sim, nem que não. Saí puta da vida, xingando o jornalista. No dia seguinte, foi publicado que eu era bissexual.

Todo mundo veio até mim: a comissão olímpica, os técnicos, os diretores, as outras atletas… Perguntavam: “Mayssa, você está sabendo o que estão falando de você?”. Estava na primeira página dos portais, na televisão…

Nos treinos, sempre tinha repórter acompanhando. Mas, ao invés de entrevistarem as capitãs ou a treinadora, como era de costume, vieram todos em cima de mim, como um enxame. O pessoal da comissão me protegeu, me tirava das coletivas, blindava um pouco o acesso a mim. Só queriam saber sobre minha sexualidade.

“Foi assim que minha mãe descobriu: pela TV”

Naquela época, os atletas não falavam tão abertamente sobre sua sexualidade. Ainda hoje é um tabu. Existiam esportistas gays, lésbicas, claro, inclusive no handebol, mas ninguém falava. Em 2012, eu tinha 27 anos, era minha primeira vez nas Olimpíadas. Eu ainda era muito besta com esses temas, não sabia como falar sobre isso.

Uma equipe do ‘Pânico’ foi pra Londres e vivia atrás de mim, tirando onda. A outra goleira da seleção era a Chana Masson, e eles ficavam dizendo: ‘Ah você deve gosta dela né?’. Ficava muito constrangida, mas acabava rindo, meio sem graça. Não podia xingar, nem brigar ao vivo…

Mas foi por causa disso que minha mãe descobriu que sou lésbica: pela televisão. Ela ficou me ligando, mas a gente não podia ficar falando com a família durante as Olimpíadas, para não desconcentrar. A psicóloga esportiva que acompanhava me pedia para ter calma. Até que bati e pé: “Vou falar com a minha mãe”.

Ela perguntou o que estava acontecendo e se era verdade o que estavam dizendo na TV. “Mainha, estou nas Olimpíadas, não quero falar disso agora. Mas está tudo bem, isso é besteira”. Não neguei nem confirmei nada para ela.

Minha mãe é católica, muito conservadora. Até hoje não entende essas coisas de homem com homem, mulher com mulher. Até então, eu levava minhas namoradas em casa, elas dormiam comigo, mas eu dizia que eram só amigas. E minha mãe também nunca perguntava.

“Quando eu entrava na quadra, imitavam macaco, me xingavam de lésbica”

Naquele mesmo ano, fui convidada para jogar na Rússia, pelo Dinamo Volgograd. Lá, ser homossexual não é crime desde 1993, mas o país tem leis bastante discriminatórias em relação à população LGBTQ+.

Quando anunciaram a minha contratação, as pessoas começaram a me xingar muito pela internet. Perguntavam: “Sua lésbica, o que você vem fazer aqui?”. Usavam nomes bem feios… Queriam usar o fato de eu ser lésbica para me ofender, mas não me assustei tanto, porque ficava só na internet.

Chegando Na Rússia, em Volgogrado, ninguém falou nada. Sabia que os técnicos, as colegas do clube, os torcedores não aceitavam minha homossexualidade, mas sempre me respeitavam. Foi na Romênia que o bicho pegou…

Em 2014, fui contratada para atuar no CSM Bucaresti. Na Romênia, o handebol é como se fosse o futebol para o Brasil. O pessoal gosta muito, acompanha os campeonatos, passa na televisão, fotógrafos seguem as atletas na rua. O Bucaresti é um time importante, joga a Champions League, e eu tinha ido às Olimpíadas pelo Brasil, então minha contratação foi bastante anunciada na TV, nos jornais.

“Mayssa Pessoa está chegando ao Bucaresti”. Claro que passaram a falar também da minha vida pessoal. Que eu sou lésbica, que eu tinha namorada. Assim como na Rússia, fui bem recebida pela equipe e pelos treinadores. Com os torcedores do meu clube, não tive problemas. Eles queriam saber do resultado em quadra.

Eu estava numa fase muito boa, jogando bem, dando meus melhores resultados. Mas quando a gente viajava para jogar contra outros times, fora de casa, era diferente: os torcedores adversários não respeitavam. Quando chamavam meu nome para entrar na quadra, eles vaiavam, faziam mímica de macaco, gritavam, me xingavam de lésbica.

Em alguns ginásios, o público ficava bem perto da gente na quadra. Quando eu estava no banco, eles cuspiam em mim. Por algumas vezes o árbitro teve que parar o jogo para limpar a quadra, porque me atiravam coisas como água, gelo, moedas e isqueiros.

“O clima ficou tão pesado, que fui para o hotel escoltada pela polícia”

No primeiro jogo, foi foda. Mas eu também provoquei um pouco… Chamaram “Mayssa Pessoa”, eu entrei, e eles começaram a vaiar, me chamar de macaca e usar a sexualidade como ofensa. Depois de um tempo fiquei no banco, e senti uma cuspida na camiseta. Olhei para trás e vi senhores de 50, 60 anos cuspindo. Fiquei tão puta…

Respondi mandando beijo para torcida adversária, dando risada, pulando. Eles foram piorando, ficando mais irritados. Não paravam de me jogar coisas. A partida parou uma vez, duas vezes…

Tiveram que chamar a polícia. O clima ficou tão pesado que fui para o hotel escoltada por policiais, porque o técnico ficou com medo de alguém bater em mim na rua. Fiquei no quarto, não me deixaram sair por uns dias.

Cada um reage de um jeito né. Tem quem chora, quem mostra o dedo, quem faz como o Daniel Alves [em 2014, na Espanha, quando um torcedor atirou uma banana no campo, o jogador de futebol pegou a fruta, descascou e comeu]. Felizmente, isso nunca me abateu. Se eu ficava muito puta, ria de volta. Esse tipo de ataque sempre vai existir, não adianta. Quando isso acontecia, eu voltava querendo jogar melhor, querendo ganhar.

Sofri homofobia também fora da quadra. Um dia, quando estávamos de folga entre os jogos, fui a um bar com as meninas do time. Um cara me chamou: “Pessoa”. Lá, somos conhecidas pelo sobrenome, que é o que aparece na camiseta. Quando eu olhei, ele falou ‘sua lésbica’ e deu uma cuspida. No meu rosto.

Esse homem saiu correndo, fui atrás dele, mas não o alcancei. Fui à polícia denunciar, mas não deu nada. Coisas assim aconteceram algumas vezes: ataques na rua, xingamentos dentro e fora dos jogos. Eles não aceitam mesmo.

Depois de um ano nessa situação, fui convidada a ir em um programa de televisão aberta de lá e falei sobre isso. Contei o que vinha sofrendo, fiz um desabafo. Falei sobre homossexualidade, contei tudo o que eu estava passando, expliquei sobre como é difícil ser gay ou lésbica na Romênia.

Disse que aquilo não era normal, era falta de respeito. Falei: “Eu não sou romena, eu sou brasileira, mas estou aqui para representar o país de vocês. Para fazer isso, preciso que vocês me respeitem”. Realmente, depois disso, a situação nos ginásios melhorou bastante. Acho que as pessoas se comoveram.

Depois desse meu desabafo na TV, a torcida chegava a aplaudir quando eu entrava em quadra. Foram meses bem difíceis, mas quando deixei a Romênia estava enfim sendo respeitada. Foi muito bonito.

“Nas Olímpiadas do Rio, minha namorada me assistiu da quadra”

Nas Olimpíadas 2016, no Rio de Janeiro, foi bem diferente. Não tive nenhum problema. Eu sabia lidar muito melhor com a imprensa, com as perguntas sobre a minha vida pessoal. Além de tudo, estava com a minha namorada lá [a holandesa Nikita Ramona], ela foi me acompanhar nos Jogos, para quem quisesse ver. E quando perguntavam, eu respondia: “Sim, ela está ali”.

Quando tudo aconteceu, lá em Londres, não foi legal. Porque me vi numa situação complicada. Minha sexualidade foi exposta daquele jeito e eu não esperava. Mas hoje entendo que, bem ou mal, ter me assumido trouxe pontos positivos.

Naquela época, não tinha muito atleta brasileiro assumido. Depois de mim, vieram outros. Acho que viram aquilo tudo e se sentiram mais confiantes. Em 2016, os atletas falaram sobre isso. Ainda bem.

“Peguei o anel de ouro cravejado de diamantes e a pedi em casamento”

Eu e a Nikita estamos juntas há quatro anos. Ficamos noivas em 2019, logo depois de um jogo da Champions League do handebol na arena Papp Laszlo, em Budapeste. Meu plano era que a gente ganhasse e aí, no pódio, eu a chamaria no microfone e faria o pedido. Ms a gente perdeu, ficou com o segundo lugar.

Como não tinha clima ali na hora de pegar a medalha de prata, decidi ir para a lateral da quadra. Lá eu peguei o anel, que comprei na Bélgica, feito em ouro branco e cravejado por diamantes, ajoelhei e fiz o pedido. Ela desceu chorando, e disse que sim. Foi muito bonito.

Minha mãe sabe que eu estou noiva, que quero me casar, mas não gosta da ideia. Fala assim: ‘Você é minha filha, não vou deixar de te amar’, mas não aceita o casamento. É pela religião dela, eu entendo…

Mas sinto que ela evoluiu bastante: entende que sou lésbica, nunca me impediu de levar a Nikita para casa e a trata muito bem. Passamos as festas de final de ano em João Pessoa, junto com minha família. Tem muita mãe que abandona o filho gay, a filha lésbica… Graças a Deus não é o meu caso.

Foi bem difícil no começo, foram anos escondendo, eu sentia medo. Não era feliz. Quando falei para a minha mãe, falei mesmo, cara a cara, foi libertador. “Mãe, é minha namorada e pronto. É assim. Eu respeito a senhora, quero que me respeite também”.

Corri o risco de ser rejeitada, mas não posso deixar de ser feliz porque não vivo do jeito que mainha espera que eu viva. Ela não gostou, claro, chorou, mas foi passando o tempo e ficou tudo bem.

Ainda evito pegar na mão da Nikita na rua. Nunca ameaçaram nos bater, mas não confio. Nem na Rússia, onde moro desde 2016, quando voltei a jogar pelo Rostov, nem aí no Brasil. As pessoas são muito homofóbicas.

Nosso casamento seria em junho deste ano, mas acabamos de adiar para 2022. Devem vir muitas pessoas de fora: a família da Nikita da Holanda, amigos que fiz na Romênia, na França, na Rússia. Queremos garantir que todo mundo possa viajar.

Eu me sinto um pouco triste quando minha mãe diz que não vai ao casamento, mas tudo bem. Não quer ir, não vai. Não vou deixar de sentir felicidade. Sou uma pessoa completamente diferente depois de tudo. Eu tinha medo, me escondia. Hoje me sinto livre.

Do Uol.