A batalha discursiva que se estabeleceu com maior ênfase a partir da eleição do presidente Jair Bolsonaro não tem nada de nova. O mito da democracia racial e a miscigenação quase harmônica não é recente. O ‘Não somos racistas’ de Ali Kamel tem pouco mais de duas décadas, portanto, nada de novo chegar ao 13 de maio com brancos negando a escravidão e até tratando-a como traço inerente ao ser humano, como definiu o deputado e emergente a príncipe, Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PSL-SP), durante solenidade que marcou os 131 anos da assinatura da Lei Áurea, que deu fim à escravidão no Brasil em 1888.
Nem tampouco que 80 tiros contra um veículo e seus ocupantes seja considerado um incidente e não extermínio. Como se o ato de escravizar fosse determinação genética e não desvio de comportamento e o extermínio de pobre e preto fosse incidente que, ironicamente, nunca atinge brancos e classe média também por incidente.
Diante do impacto inclusivo das cotas raciais surpreende menos ainda os ataques às universidades. Ações essas consideradas como parte de um mal necessário para expurgar doutrinações divergentes do governo e que se possa instalar doutrinações concordantes. Elas podem ser interpretadas como releituras e desmonte de farsas históricas.
Nada disso passa despercebido em uma guerra por restabelecer as histórias oficiais, em que se negava o protagonismo do povo, em geral pobre, favelado e negro, periférico, subalterno dentro de uma visão patriarcal, caucasiana e hegemônica.
Os ataques às universidades, à produção científica e às artes – com a revisão dos contratos via Lei Rouanet – fazem parte de uma ação orquestrada do governo tentando extirpar dos espaços, que são plurais, aquilo que é divergente da ideologia, convicção e valores morais de quem se diz defensor da família, mas que, no entanto, casou três vezes; que se diz cidadão de bem e aparece com milicianos em fotos; que diz combater a corrupção e usou verba destinada à moradia como parlamentar, portanto, verba pública – “para comer gente”.
Mesmo com todas as críticas possíveis, as cotas raciais e sociais, os estatutos do Idoso, da Criança e do Adolescente, as políticas LGBTQIS, as leis de proteção às mulheres e os pontos de cultura contribuíram para que uma massa não precisasse sair de seus guetos.
As vozes do povo pobre, preto e favelado irradiaram para o asfalto, as áreas nobres e os espaços de poder. E além disso: assumiram as próprias vozes que gritam contra o racismo, as desigualdades sociais, a inércia dos governos para as urgências cotidianas das favelas, interiores e grotões e assim constroem as narrativas de hoje.
E mais do que isso: resgatam e reescrevem as narrativas do ontem. Para além do poder de ressignificação da História, ela tem sido recontada por seu próprio povo preto, favelado e inquieto por justiça, igualdade e lugar ao sol.
A culpa talvez nem seja da Princesa Isabel, nem de Gilberto Freyre, nem de Ali Kamel. Se há um culpado, talvez seja a nossa inércia enquanto povo ao se satisfazer em ver uma massa sendo perseguida, excluída e tendo sua existência negada e se contentar ontem com o luxo dos salões. Hoje, com a glamourização dos cliques e famas das redes sociais.
Só que dessa vez, o povo negro, mestiço, pobre, favelado está pulverizado pela sociedade e será difícil com uma canetada dissolver aquilo que já se impregnou na cultura brasileira fragmentando a verdade branca, dominante de que desde 1539 quando chegaram no litoral brasileiro as primeiras levas de navios com humanos negros escravizados.
A verdade agora está na voz de cada pessoa negra que resiste e corrige que não teve harmonia, que não houve democracia e nem tampouco que é do humano. Ao menos, não do lado de cá. Resta saber se é da essência do príncipe sem reinado ter vocação para se tornar escravagista, torturador e sádico com carne preta sangrando.
“Meninos mimados não podem reger a nação“, já disse Criolo certa vez. Um crioulo deixando o príncipe nu.