Tom Zé, profeta antropofágico, chega aos 80 anos lançando moda e antecipando futuros

Eis que chega à cena dos 80 anos de vida o gênio baiano Tom Zé. Músico, letrista, intérprete e arranjador, está para a MPB assim como Raul Seixas está para o rock no Brasil, como Jackson do Pandeiro está para o forró, artista que está para a Tropicália com Caetano, Gil e Torquato Neto assim como João Gilberto está para a Bossa Nova.

Construiu uma obra de dimensão internacional tão importante quanto a de Naná Vasconcelos, Djalma Correia, Airto Moreira e Hermeto Pascoal. Com Jards Macalé e Jorge Mautner forma o Triângulo das Bermudas para trituração do conformismo artístico.

Tom Zé e Jorge Mautner explicam a revolução que foi o movimento tropicalista

Chega a esse marco da existência com 28 álbuns gravados, fora coletâneas e a pirataria desenfreada, trilhas sonoras para espetáculos os mais diversos, arranjos muitos e o prestígio de um inventor de quem não se pode suprimir o mérito de ter inovado as trilhas da criação artística brasileira.

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Junto com Caetano Veloso, Gilberto Gil, Nara Leão, Gal Costa, Os Mutantes, Capinam, Rogério Duprat e Torquato Neto, Tom Zé lançou o álbum “Tropicalia ou Panis Et Circencis”, em 1968

Foi ele o cara que soprou as luzes da experimentação sincrética rurbana proposta pela Tropicália. Do espaço simbólico rural, o movimento musical resgatou toda a luz do dinamismo fundador das contradições do poder sócio-político embarcadas na folclorização dos modos de ser no e fazer o mundo; do urbano, a reivindicação de um novo palco iluminado por spots multifocais. Som híbrido (tradição, renovação, experimentalismo) o que ele faz, plataforma para o evoluir dos ideais igualitários que qualificaram a subjetividade da pessoa na modernidade industrial. Ê bumba-iê-iê-boi.

Músico de músicos, ideólogo anarquista das misturações estilísticas, Tom soprou a purpurina radioativa sobre a pele dourada da Bossa Nova cosmopolita. Estava com Gil e Caetano na hora das convergências éticas e estéticas que teceram a teia da inovação tropicalista. Além de Rogério Duprat com quem também fez a revolução, com os Mutantes… Juntos reinventaram a roda crítica da pós-modernidade na canção brasileira.

“Parque Industrial” é a única música do Tropicalia ou Panis Et Circensis de autoria de Tom Zé
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“Grande Liquidação” é o álbum de estreia de Tom Zé

A consciência antropofágica que marcou a virada da cultura artística nacional na efervescência dos anos 1920 foi novamente apropriada por uma geração de artistas que à beira das rebeliões juvenis de Maio de 1968, ano de estreia de Tom Zé em disco, decidiu reorganizar as rotas poéticas da musicalidade que a envolvia.

O que resultou dessa ansiedade que se fez concretude através de canções que disseram muito do que as pessoas sentiam sob a pressão de uma ditadura militar foi uma obra coletiva por força dos referenciais de um grupo específico manejando a mesma linguagem, mas de grande expressividade autoral devido ao poder criativo dos seus compositores e autoras, intérpretes e instrumentistas.

Ao mesmo tempo, se colocou como produto de massa contra a massificação alienante da indústria cultural, deslocou valores, introduziu novas práticas técnicas, incorporou tecnologia à produção musical e proclamou uma nova sensibilidade.

Tudo nessa mesma indústria cultural da exacerbação midiática para a lucratividade e também para a expansão dos meios de realização e criação à disposição d@s artistas.

Criação, transmissão e percepção da música popular ocorrem então sob os novos parâmetros professados por artistas que se fizeram intérpretes de valores existenciais, culturais e político-ideológicos que se impunham ao Ocidente. Processos até então restritos a setores específicos da sociedade a exemplo do comunitarismo hippie na esteira da cultura rock, o comunismo anti colonialista que ativou os Centros Populares de Cultura, e o anarquismo da pansexualidade do amor livre e da contracultura do psicodelismo e da expansão artificial da mente.

Tom Zé, artífice desse novo tempo nascido Antônio José Santana Martins a 11 de outubro de 1936 em Irará (BA), é para muitos o mais dos mais provocativos criadores do pensamento crítico sobre a prática musical brasileira a partir do início dos anos 1960.

Estudou música na Universidade da Bahia e foi aluno de feras do nível de Walter Smetak, com quem aprendeu as sofisticações intervalares da música microtonal, e de Hans-Joachim Koellreutter com quem teve acesso às estruturas lógicas do dodecafonismo. O que fez Tom Zé com que esse arsenal erudito? Desconstruiu as lógicas dos sistemas tradicionais em que se equilibravam a nossa música, a lógica do samba, do bolero, das influências ibéricas, para inaugurar uma liga sonora de musicalidade plural, misto de assemblage estilística de múltiplas pulsações, instaurações ideogramáticas polissêmicas e séries retóricas a partir de desenhos melódicos arquetípicos, de parlendas a batuques afro-ameríndios.

Ele olha pouco para o passado. O agora lhe arrebata mais. Mas dialoga com os arcaísmos que fundamentaram a sonoridade da nossa prosódia. Tom Zé é um pesquisador da poesia provençal, suas fórmulas, os modos da lírica trovadoresca… Ele revive o lirismo dos ideais de pureza das canções de amor e de amigo, e também o contrário: o rigor destrutivo das trovas de escárnio e de maldizer. Os  ritos e ritmos das nossas falas, a psicologia da nossa língua com suas modulações, sotaques e firulas idiomáticas ele os transfunde às letras das canções que cria. Os temas podem ser evocações sonoras de um balbuciar rural que se atualiza numa conversão semântica no instante de sua incorporação para uso contextualizado, ou um conjunto de mosaicos de significados que se completam ou se fragmentam convertidos em motivações sensoriais para a excitação intelectual.  Vidente, profeta, filósofo, Tom Zé está de ouvido alerta à teoria da relatividade, tem o olhar quântico e a língua solta contra a ostentação dos classicismos que se querem donos do mundo.  Aos 80 anos, mistura e manda como o fizeram David Bowie e Andy Wharol. Soa novíssimo na música de grupos como “Mundo Livre S/A” e lançou um novo álbum em que o faceibuqui é um dos personagens. Mais criativo do que nunca, Tom Zé antecipa futuros.

(Reproduzido de o jornal A União, edição de 11/10/2016)