Temeridade: o vice-presidente da República e seu narcisismo desastrado

Por Walter Galvão

Temeridade, significado (dicionário Houaiss): substantivo feminino. 1: Ousadia excessiva. Imprudência. 2: qualidade, ação ou dito de temerário. Etimologia: lat. temerĭtas,ātis ‘desatino, despropósito, estouvamento, falta de reflexão’; ver temer-.

Temer- (é um) elemento de composição. antepositivo, do lat. temēro,as,āvi,ātum,āre ‘profanar’. der. latinos: temerarĭus,a,um ‘imprudente, estouvado, desatinado, temerário, inconsiderado, desarrazoado’, temerĭtas,ātis ‘desatino, despropósito, estouvamento, leviandade, audácia, ousadia, atrevimento’, intemerātus.

Após essa rememoração do significado da palavra temeridade, chamo a atenção para o fato de que na atual conjuntura política nacional ela conquistou um sentido adicional. Um sentido, que remete a subterfúgio, dissimulação e intempestividade, atrelado à dinâmica da interferência da personalidade do atual vice-presidente da República Michel Temer no processo de articulação de presumível impedimento da presidente Dilma Rousseff por causa de suposto crime de responsabilidade.

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A indisposição do vice-presidente da república com a presidente Dilma se tornou pública através da carta que ele escreveu a mandatária em que diz, dentre outra alegações, ter sido “um vice decorativo”. Desde então, o rompimento se tornou iminente.

Gostaria de propor uma reflexão sobre dupla temeridade do vice Michel Temer: a divulgação da carta por ele enviada no final do ano passado à presidente Dilma, em que afirmava: “Sei que a senhora não tem confiança em mim e no PMDB, hoje, e não terá amanhã. Lamento, mas esta é a minha convicção”; e o envio esta semana para um grupo de WhatsApp de um áudio que segundo ele seria o ensaio de um discurso à nação após a concretização do impeachment.

O vazamento, não intencional, assegura o vice, desse áudio foi gasolina sobre as chamas da “conspiração para derrubar a presidente” denunciada diuturnamente pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e seus aliados, filiados, militantes e simpatizantes.

A reflexão rápida que proponho é à luz da psicologia política, essa nova ciência que se dedica ao comportamento político nas sociedades contemporâneas. Subjetividade, intersubjetividade, diálogo e participação são objetos da psicologia política, assim como são o racismo e as formas de preconceito, a xenofobia, as políticas públicas a exemplo de saúde e educação, campos onde se encontram e se conflitam as forças psíquicas e da linguagem. Tudo em meio ao fluxo dos poderes e do exercício juridicamente orientado desses poderes nas esferas pública e privada.

Posse de Dilma - segundo mandato
A presidente Dilma Rousseff acampanhada da filha Paula (à esquerda) e o vice-presidente Michel Temer ao lado da esposa Marcela (à direita) durante a cerimônia de posse do segundo mandato. Na imagem ele aplaude Dilma, que está com a faixa presidencial. Certo da concretização do impeachment, Temer se prepara para “roubar” a faixa e assumir o controle do país.

O tom da carta e a forma de exposição do discurso escolhidos pelo vice-presidente sugerem um quadro de midiatização do contrato narcísico. “Midiatização pode ser entendida como múltiplos entrecruzamentos entre tecnologias midiáticas, campos e atores sociais, meios de comunicação social tradicionais e sociedade”, explica a especialista em comunicação midiática Fabiane Sgorla.

Mas é algo arriscado. Que pode sair totalmente do controle. Na maioria das vezes, dá certo quanto à visibilidade de temas, ideias e/ou pessoas.

Já o “contrato narcísico”, originalmente, nos séculos XIX e XX, é definido por cientistas a exemplo de Sigmund Freud como a tentativa natural, geracional, de os pais libertarem os filhos dos controles a eles impostos por leis da natureza e da sociedade. Na contemporaneidade, o século XXI da sociedade pós-industrial, assumiu esse contrato narcísico uma centralidade enquanto o que o filósofo Gilles Lipovetsky define como uma “forma inédita de apatia, que se distingue por sensibilização epidérmica em relação ao mundo”.

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Temer já se prepara para assumir a presidência do Brasil, ensaia discurso e discute a composição do novo governo. Estaria o Brasil e o povo brasileiro prontos para assumir Michel Temer?

Em “A era do vazio”, Lipovetsky vê em nossa pós-modernidade a modulação do narcisismo que assume a forma de uma nova personalização ou individualismo. Isso atende ao imperativo de o indivíduo ser mais ele mesmo em confronto com as regras estabelecidas pela cultura da modernidade ainda vigente (convenções morais e políticas, entre outras, universalizadas) no seu entorno psicossocial. Esse novo indivíduo, às vezes definido como hipermoderno, leva cada vez mais à esfera pública, via mídias e redes sociais, suas cargas mais íntimas de aspirações. Pretende conduzir a sociedade pelo viés dos seus desejos.

Michel Temer, com a forma de sua exposição, nos casos da carta e do WhatsApp, de emoções e desejos que poderia ser interpretada como uma infantilização temerosa, e uma redução temerária do sentido histórico da esfera pública da práxis política, revela uma angústia da inadequação e do vazio frente ao teatro do poder do qual participa tangencialmente devido à condição de vice. O que se tem a partir da carta e do “ensaio do discurso de posse” é a angústia “narcísica” reveladora de uma persona política aparentemente desprovida da força que ele acredita ter para governar o Brasil em tempestade. Ele na Presidência é de se pensar que seria uma temeridade…

(Reproduzido do jornal A União, 13/04/2016)