Sobre pixo, grafite, arte e cidade

A vida urbana é um livro que precisa ser lido com atenção. Aliás, um livro ilustrado. As coisas que acontecem pelas esquinas, pelos becos, geralmente passam em brancas nuvens. O cotidiano e a pressa de viver oculta muitas verdades. Recentemente, passando pelas Três Ruas, no bairro do Bancários, em João Pessoa, vi uma casa abandonada (quase em ruínas) com uma grafitagem bacana e uma frase muito significativa escrita no portão: “tanta casa sem gente, tanta gente sem casa.” Quem mora por aqui sabe que as casas originais do Bancários são bem estruturadas. Nenhum luxo, mas uma boa estrutura. O conjunto habitacional é de um tempo em que ser bancário era quase um passaporte para a classe média. No entanto, em um lugar considerado privilegiado de um bairro tão cheio de intelectuais, artistas e outros trabalhadores, o impacto de uma intervenção artística numa residência abandonada tem provocado, no máximo, muita indiferença. Entretanto, essa transgressão alerta para um debate necessário. A rua e o ambiente urbano é palco, tela e espaço de publicação. Poemas, frases sensuais, filosofia, protestos políticos, mensagens do crime organizado, mas também e principalmente, signos de uma abundante invisibilidade social. Algo cada vez mais visível, por sinal. Desafios cada vez maiores. Perigos cada vez mais tensos.

Neste caso, o vandalismo foi cometido pelo dono de um imóvel que poderia estar alugado, ou mesmo cedido para alguma instituição, caso o dono não desejasse fazer uso do local. A intervenção artística chegou como denúncia social. A desigualdade não nos basta. Bastaria uma ocupação de sem tetos no local para chegar uma ordem judicial de desocupação. Enfim, este é um resumo desses confrontos cotidianos da modernidade. No caso, a grafitagem no local transforma as ruínas em mensagem sobre uma realidade que precisa mudar. Além do patrimônio que se cria enquanto arte sem fronteiras, ou sem galerias, como queiram. Segundo me informa o Giga Brow, trata-se de uma obra do artista Joint da PDA. Provavelmente sequer das pessoas que fazem caminhadas matinais por ali prestam atenção na profundidade da frase escrita. Sequer estão atentos para o que consideram sagrado: a propriedade privada que, desta forma, se coloca em questão. Mas, não vamos aqui discutir a origem da propriedade privada. Continuo entendendo que, em diversas situações, o abandono incomoda muito menos que a ação transformadora.

Mas, vamos dar um rolezinho noutra margem. Vamos que vamos, mas sabendo que vou escrever sobre coisas das quais não tenho certeza alguma. Não creio que o pixo possa ser visto apenas como vandalismo e seus agentes possam ser condenados como vândalos. Mesmo que muitos possam e queiram ser apenas vândalos. Mesmo que muitos sejam a apenas expressão desarticulada de uma revolução silenciosa. O pixo é a voz do silêncio. Mais que isso: é também a transgressão do silêncio. A fala de uma geração acostumada ao abandono e aos vandalismos do sistema. O pixo é quase sempre uma expressão da feiura das cidades. Uma feiura que se revela, por exemplo, no aumento da população de rua. O que está nos muros, está também nas calçadas. Já grafite pode ser uma intervenção artística muito interessante. Estetica e socialmente mais palatável que o pixo. Mas, pode ser também a pintura infantilizada e malfeita, eivada de clichês. O fato é que ao se apresentar como linguagem urbana, o pixo se oferece também como instrumento de comunicação para a invenção artística. Cripta Djan, o pichador mais influente de São Paulo, ajuda a entender o que o movimento do pixo (com X mesmo) pensa sobre arte, política e a diferença entre pixação e grafite. Para ele, o pixo é o que existe de mais conceitual na arte contemporânea.

O que eu quero dizer com todas as letras é que nem todo grafiteiro é artista e nem todo pichador é vândalo. No entanto, todos são transgressores. Como Salvador Dali foi um transgressor. Como Maiakovski foi um transgressor. Como Tristan Tzara que com o Dadaísmo, colocava todos os transgressores no bolso. O debate generalista que se forma em determinados grupos, obedece apenas o padrão estético da classe média brasileira que se incomoda com o pixo, da mesma forma que se incomoda com o morador de rua. De certa forma atéaceita e gosta do grafite. O cidadão não quer saber o porquê das coisas. Pedir para que reflita sobre a origem da questão é pedir demais. A classe média vive de imagens construídas num olhar que não lhes pertence. Num modelo existencial construído ideologicamente como se fosse um jazigo das estruturas milenares do poder político.

Esses conflitos retratam de maneira fiel a realidade social brasileira e, de certa forma, até mesmo mundial. A forma como as pessoas se veem umas às outras. A forma como se relacionam. Sejam essas pessoas grafiteiros, pichadores, artistas ou gerentes de multinacional. A forma como se relacionam é que vai ou não fazer a diferença. Por exemplo, sempre soube que existe um pacto moral entre grafiteiros e pichadores. De certa forma acho que existe, pois nunca vi um pichador transgredindo uma grafitagem. São os códigos da rua. Seja uma intervenção meramente social ou inequivocamente artística. Sim, porque devemos compreender que alguns artistas maravilhosos como os que temos por aqui, Shiko, Giga Brown, Marquinos Perfect, Cibele Dantas, Thayrone Arruda e outros e outras se firmaram na arte tendo o grafite como linguagem. Hoje, me parece, transgrediram a própria linguagem. Não são todos iguais. Cada qual soube construir sua identidade artística, um estilo. Ou seja: o indivíduo com o seu talento pessoal transgrediu a própria opção coletiva. Isso é ruim para o grafiti como expressão? Acho que não, pois arrastou toda uma tribo para a visibilidade e ainda consolidou nos salões um discurso que é das ruas. Mas se há um pacto solidário, de não agressão ao espaço conquistado, entre grafiteiros e pichadores, o mesmo não ocorre com outras modalidades de arte.  Especialmente da arte pública. Por exemplo, o monumento ao Cavalo Marinho feito pelo artista plástico Wilson Figueiredo e localizado em frente a UFPB, está pichado.  A estátua de Jackson do Pandeiro, recentemente, recebeu uma intervenção em tinta que algumas pessoas identificaram como lágrimas, para minimizar o impacto de uma intervenção que não guarda o mesmo respeito entre pichadores e grafiteiros, guardadas as devidas tretas.  Existe, portanto, algo a ser debatido. Algo precisa ser dito. Continuo entendendo uma obra de arte como um ser independente até mesmo do seu criador. Algo que precisa ter sua integridade preservada. Do outro lado temos um Dória da vida, cheio de estupidez, achando que limpa a cidade despejando sem teto e cobrindo pichações e grafitagens. Que tal ampliarmos esse debate? Sabendo que as respostas necessárias para o momento, não poderão jamais ser conclusivas.