Políticas para o mercado ou para a leitura?

Uma pulga atrás da orelha me informa que o atual ministro da Cultura quer implantar bibliotecas comunitárias nos conjuntos financiados pelo programa Minha Casa Minha Vida. Diz a pulga fofoqueira que a notícia saiu um dia desses e nunca mais se tocou no assunto. Mas, fofoca de pulga não é coisa pra ser guardada atrás da orelha. A desconfiança do bichinho não vem apenas do fato de Calero ser ministro de um governo cuja legitimidade é questionada nacional e internacionalmente. Segundo a nossa fofoqueira mínima,  o  Excelentíssimo  deseja apontar soluções mágicas e simpáticas aos segmentos mais críticos da Cultura. Entretanto, sem conhecer muito bem o chão da sua pisada. Ele ainda não se “enturmou” com o segmento. Em cada declaração parece querer angariar simpatias, mas não gera confiança alguma. Compreensível, afinal, não deve ser fácil ser ministro da cultura de um governo golpista. O segmento, historicamente, não engole fácil esse tipo de circunstância. Caleiro pode até ser bem-intencionado, mas é um gestor cercado de nuvens. Não poderia ser diferente, dadas as circunstâncias da sua ascensão como Ministro da Cultura. Ele aceitou o cargo no vácuo de honrosas recusas. Talvez ainda precise mostrar para si mesmo que valeu o sacrifício.

Todavia, não desconfio do Caleiro por questões conjunturais, apenas. Mas, por razões bem pragmáticas. Algumas experiências semelhantes, inclusive nos governos do PT, me pareceram bem infrutíferas. Boas intensões isoladas e desarticuladas. Cito como exemplo o projeto Arca das Letras, do Ministério de Desenvolvimento Agrário. Um projeto cheio de boas intensões, mas com falhas estruturais gravíssimas. Pouca articulação com a militância leitora e uma fundamentação centrada no marketing e não na pedagogia. Esse erro crasso fez com que muitas Arcas, em comunidades rurais, sirvam hoje apenas como um móvel de suporte para a televisão. Não se trata aqui de crítica negativa. Absolutamente. Nos dois casos, vejo com bons olhos a preocupação com o acesso ao livro e leitura. Mas, como se trata de investimento público, penso que os dois formatos favorecem mais ao mercado do livro que a formação de leitores. E olha que isso a pulga nem sabia.

Pesquisas realizadas pelo Instituto Pró-Livro nos mostram números que não podem ficar fora deste debate. Em 2007 a primeira pesquisa dizia que o Brasil era o décimo maior produtor de livros do mundo e que o MEC era o terceiro maior comprador de livros do mundo. Já a pesquisa realizada em 2016 diz que trinta por cento dos brasileiros nunca comprou um livro e 44% da população brasileira não lê. Não vou entrar na análise da qualidade dos livros mais lidos. Nem me referir ao analfabetismo funcional das pulgas. O fato é que quadro é desolador para a formação crítica do povo brasileiro. Podemos até observar que, num aspecto, a preocupação do ministro e dos ex-gestores do MDA procede. Precisamos facilitar o acesso ao livro. Porém, isso não pode ser feito de forma tão apressada. Assim, favorece apenas o mercado. Os investimentos públicos na área já são por demais vultuosos. Penso inclusive, que os tribunais de contas deviam prestar atenção ao fenômeno. Para uma política nacional de popularização da leitura o que não falta é livro. Falta distribuição consequente. Existe escola com programa de leitura e sem livros e livros encaixotados em bibliotecas fechadas. Que tal começarmos trabalhando com os livros já adquiridos? Em muitos casos, acervos e mais acervos espalhados na inércia. Que tal investir prioritariamente na estruturação dos acervos das bibliotecas públicas, escolares e universitárias? Inclusive fiscalizando seus funcionamentos. Que tal investir nas experiências já existentes e exitosas de pontos de leitura? Fomentando, inclusive a sua expansão. Teríamos mais pulgas leitoras e menos pulgas fofoqueiras.

Entendo que uma política para o livro e leitura não pode deixar de observar alguns fatores determinantes. Um deles é a transnacionalização do mercado livreiro conjugado com a marginalização da literatura nacional. Mesmo a canônica. Por outro lado, a literatura contemporânea não pode estar fora desse debate pois, potencialmente, o autor é um dos principais agentes na formação de leitores. Principalmente num quadro de professores não-leitores. Todavia, devemos reconhecer que o pouco de política para o livro que tivemos desde o governo Lula estabeleceu uma militância em defesa do livro, da literatura brasileira e da leitura. Planos estaduais e municipais de leitura foram e estão tomando corpo. O Plano Nacional nos dá régua e compasso. Reapareceram os contadores e contadoras de história, não mais como cultura familiar, mas como profissionais da mediação. A literatura brasileira contemporânea está com uma produção estonteante, efervescente, mesmo fora do mercado formal e fora das políticas públicas. Existe, pois, uma diversidade de fatores que precisam ser analisados.

Faço essas observações por entender que não estamos mais no tempo de gerar expectativas e repetir os mesmos erros.  Que cada passo seja lento e certeiro. Antes de anunciar o varejo como se fosse o grande projeto, cabe ao ministro Caleiro ou qualquer outro que venha a ocupar o seu lugar, fortalecer o Plano Nacional do Livro, Leitura e Literatura. Nesse contexto, a aproximação com a Educação é indispensável, uma vez que nas últimas décadas o Brasil formou professores distanciados da leitura e da literatura. Essas políticas precisam ser articuladas com os Estados e municípios e ancoradas, especialmente, em milhares de pequenas experiências exitosas espalhadas pelos rincões brasileiros. A premiação poderia ser o fomento para a expansão. Chega de pensar políticas para o livro apenas para fortalecer um mercado que não reconhece a literatura brasileira e despreza a formação cidadã a partir da leitura literária. Caso contrário, daqui a pouco teremos um fundamentalista lunático propondo políticas para a leitura, sem literatura. Neste caso, certamente, as pulgas entrarão em guerra civil.