Morro de medo do senso comum. Corro das unanimidades. Penso que uma das coisas que mais assusta nos tempos atuais é a banalização coletiva da vida. O naco empoeirado de democracia que conquistamos, certamente, não foi bem aproveitado. Temos assistido cenas horrorosas e absolutamente abortadas da memória comum. Por exemplo, quando aqueles rapazes tatuaram na testa de um adolescente a frase “Eu sou ladrão e vacilão”, sinalizavam que boa parte das ditas ”pessoas de bem”, perderam o senso de justiça e de humanidade.

Não me refiro apenas aos rapazes que cometeram tamanha violação dos direitos humanos e devem pagar por isso. Mas, às pessoas entrincheiradas na própria covardia que passaram a manifestar apoio ao ato tresloucado dos tatuadores sobre um jovem infeliz. Alguém que deveria simplesmente ter sido entregue para uma delegacia especializada. Nada justifica tamanha crueldade, tamanha humilhação. Nada justifica a tentativa de inibição ao crime com atos e ações criminosas. Muito menos ainda num país de homens poderosos, evangélicos e “do lar”, como Eduardo Cunha e tantos outros da sua laia. Esses, mesmo presos, estão cheios de poder e dinheiro para tatuar a miséria no olhar das multidões.

Semana passada, também, pude ler num jornal que a secretária de saúde da cidade de Cajazeiras-PB – Primeira Dama do município – defendeu publicamente o uso do choque elétrico em pacientes com esquizofrenia. Pior de tudo: ela se justifica apontando casos na própria família. A emenda ficou pior que o soneto. Conseguiu piorar o que já era cruel demais, pois se mostra incapaz de amar até mesmo os seus. O fato alarmou militantes da Luta Antimanicomial, da saúde mental e outros militantes humanistas. Foi esmagadora a manifestação de pessoas contrárias ao posicionamento da secretária.

No entanto, pude observar que nas redes sociais e nos comentários dos portais alguns profissionais também se posicionaram justificando o choque para determinados casos. Claro, com a mesma crueldade, mudando apenas o método e a nomenclatura. Justificando assim a tortura física como instrumento terapêutico. É impressionante como estamos sempre a um passo de um retrocesso. Quem já teve alguém muito querido vitimado pela desumanização dos tratamentos pode falar com segurança. Esse não é, absolutamente, um assunto exclusivo dos especialistas. É um problema social e de saúde pública. A questão humana que fala mais alto. A aplicação de métodos violentos “de cura”, como o choque elétrico, não pode ser tão banalizada.

Sem ser especialista no assunto posso dizer com muita segurança que o choque não cura. Apenas destrói a pessoa. Aniquila suas defesas diante de uma doença que, na verdade, já é a própria fragilidade. Não precisamos de especialidade alguma para admitir o óbvio. O preconceito contra a doença mental é, talvez, uma das mais cruéis justificativas para a exclusão social. A maioria dos doentes mentais vive ainda num verdadeiro apartheid.

Assim, concluímos que sociedade moderna está se notabilizando pela crueldade. Não são bandidos consagrados por crimes e condenações que defendem essas aberrações. São as pessoas ditas de bem. Não somente as pessoas de bens. Pessoas da nossa convivência, às vezes. Homens e mulheres que circulam entre nós e postam suas ideias nas redes sociais. No caso de Cajazeiras, simplesmente se trata da maior autoridade em saúde pública de uma das mais importantes cidades da Paraíba.

Lembro ainda do policial que acorrentou um rapaz a um poste, no Crato-CE (foto), no ano passado. Também por motivo de roubo. Não bastou prender. Tinha que submeter ao suplício. Afinal, a humilhação que destrói a condição humana. Tinha que reproduzir o ambiente escravista. O tempo onde os negros eram submetidos a todo tipo de violência publicamente, sem qualquer contraponto legal. Não posso crer que o policial não soubesse que também estava cometendo um crime. Suas motivações eram outras. Sabemos que reina no senso comum a frase “bandido bom é bandido morto”. Seriam mais sinceros se dissessem que “bandido pobre é bandido morto”. Os ricos, no máximo, recebem cela especial ou pena domiciliar.

Não há delação premiada que diminua a humilhação de pessoas que já nascem condenadas.  Essas coisas nos fazem acender o sinal amarelo, pelo menos. Precisamos prestar atenção para onde caminha essa humanidade tão ensandecida. Afinal, estamos apenas concluindo as duas primeiras duas décadas do século XXI e já parece que temos um amargo futuro pela frente. O que mais nos preocupa é que não são casos isolados. As teias segregadoras da sociedade dita moderna espalharam-se indefinidamente.

Já não são focos isolados de insensatez. O fascismo brasileiro saiu do armário, como dizem por aí. São inúmeras as situações macabras comentadas nas redes sociais de forma agressiva, com intolerância. Pessoas ditas comuns são estimuladas ao crime sob pretexto de alcançar a justiça. A banalização do ódio tem tornado as pessoas cada vez mais cruéis. As pessoas de boa fé não podem perder esse debate. Seja nos bares, nas igrejas, nas mídias, nos parlamentos ou nas redes sociais.