Os desafios morais na cidade ética são como sinais de trânsito no fluxo das decisões que fazem o cotidiano das pessoas. Liberam e inibem os deslocamentos das vontades individuais frente a necessidades coletivas e possibilidades gerais à luz da lei e da razoabilidade.

O caso que houve na semana passada de (auto)liberação de uma pessoa num hospital da capital às vistas de um corpo técnico legalmente responsável, pessoa que morreu a caminho de casa após caminhar 300 metros, é um evento moral de altíssima complexidade.

Simboliza, quanto à universalidade das necessidades e à particularidade das vontades, um desafio que se impõe às políticas públicas de suporte e promoção da cidadania, ao autogoverno, a produção de si mesmo enquanto expressão da consciência da subjetividade na comunidade. E à sociedade é um desafio relativo ao necessário esforço comum para a conquista do bem.

Entre os campos de significação desse mosaico complexo, destaco aquilo que, conforme os especialistas, seriam princípios da bioética hospitalar orientados pela Constituição em sua compreensão de como a saúde da população deve ser cuidada.

Esses princípios (missão, identidade, cuidado, foco primário na pessoa como razão institucional, humanização, equidade, igualdade, justiça, solidariedade, respeito aos direitos legais) superaram o curativismo e acolheram, para além da recuperação pura e simples, também a promoção, a proteção e a prevenção na perspectiva dos fundamentos do Sistema Único de Saúde (SUS) quanto à universalidade, integralidade e igualdade no atendimento.

Sob essa lógica, apesar de a pessoa – incomodada com a demora da resposta que buscou do serviço – ter se recusado a continuar esperando o tempo necessário para que a cirurgia fosse realizada, mesmo assim, permitir que ela saísse descontrolada, desorientada, sozinha e enferma do hospital foi um erro. Um erro mortal.

Não cabe aqui julgamento das pessoas envolvidas, mas sim de uma mentalidade estruturada no maquinismo das competências hierarquizadas e da repetição tecnicista e burocrática do atendimento.

Faltaram principalmente foco na urgência do ser, respeito à dignidade da pessoa humana, prevenção e promoção da saúde como motivações para a realização do atendimento a quem está doente. Uma desumanização que merece discussão.

Afinal, o problema, desafio multidimensional, é da responsabilidade não apenas daquela equipe específica, nem do setor saúde sozinho. É da alçada geral. Realmente, um problema de todos nós.

Desumanização

Acredito que chegamos ao termo desumanização a partir de uma (des) constituição do que seria o humano em conflito, confronto e contraste com o divino. E também, numa perspectiva equivocada, humano enquanto posicionamento de superioridade em relação a outros seres, inclusive os da enorme comunidade dos mamíferos sexuados à qual pertencemos.

O termo tem a ver com o jogo de significações nos levou a apreender no humano, termo provavelmente originário de húmus, uma evolução do que seria da terra, o barro iniciático, uma condição especial de homens e mulheres capazes de constituir um ideal compartilhado de vida para além dos estímulos sensoriais e dos impulsos instintuais de sobrevivência. Humano a partir de certos rudimentos gregários para a colaboração via linguagem num campo avançado comunal mais complexo do que a comunidade das abelhas, dos lobos e dos macacos.

O sentimento moral de solidariedade nos momentos de perda, de angústia e de temor; a certeza enigmática de haver uma essência imaterial do ser; o impulso do compartilhamento dos meios de sobrevivência, a cognição estruturada, esquemática e metodológica, o sonhar como expressão estética da consciência em pura especulação, o raciocínio lógico… marcas do humano, bem como suas quedas e atos de crueldade, traições e vícios que também nos caracterizam.

Desumanizar seria encaminhar a percepção do outro ao nível da coisificação, processo de alienação das relações que resultaria em opressão, redução à corporeidade instrumental, subtração dos princípios da cultura de promoção da liberdade, da dignidade e da consciência crítica. Vivemos no limiar da coisificação. Não devemos aceitar isso como expressão natural do tempo, mas sim uma convenção que só a alguns poucos beneficia.

Definição

“O homem é uma corda esticada entre o animal e o super-homem: uma corda por cima do abismo; perigosa travessia. Perigoso caminhar; perigoso olhar para trás, perigoso parar e tremer. O que é de grande valor no homem é o fato de ser uma ponte e não um fim; o que se pode amar no homem é ele ser uma passagem e um acabamento”. (Nietzsche, em “Assim falou Zaratustra”)

Reproduzido de o jornal A União, edição de 30 de julho de 2017.