Opinião: ‘La Dolce Vita’ marcou época, foi ousado, moderno e vanguardista da cinematografia

Clássico do cinema e uma das obras-primas do mestre Frederico Felline (1920 – 1993), La Dolce Vita (Itália, 1960. Direção: Frederico Fellini) esteve em cartaz recentemente, numa cópia restaurada. Ficou um mês em exibição nos cinemas da rede Cine Espaço através do Projeto Clássica, que antes já havia exibido O Sétimo Selo (Suécia, 1957. Direção: Ingmar Bergman).

Eu já havia visto ao filme antes, mas poder ver La Dolce Vita em tela grande, numa projeção de cinema, foi uma experiência singular. Me senti numa sessão do Festival de Cannes de 1960, onde o filme foi lançado e causou um frisson imediato, tendo vencido a Palma de Ouro naquele ano.

Desde os instrumentais do início, com os créditos aparecendo, às cenas clássicas e icônicas, como a inesquecível – e belíssima – sequência entre Marcello Mastroianni e Anita Ekberg na Fontana di Trevi, o filme envolve, diverte, sensibiliza. Impressiona o olhar apurado de Fellini, a ironia arrojada com que ele trouxe para as telas as relações humanas, os jogos-de-cena do cotidiano, o absurdo e o farsesco inerentes, tudo numa narrativa fluida, rica de recursos arrojados e sem nenhum resquício maniqueísta.

O filme é considerado uma das obras magnas da história do cinema mundial. Uma produção que marcou época, impactou pela sua ousadia e pela abordagem modernista, à vanguarda do que estava sendo produzido. Paparazzo, o nome da personagem do fotógrafo de celebridades insensível e sarcástico, amigo do protagonista Marcello Mastroianni, disposto a tudo por um flagra, se tornou a definição para esse tipo de profissional da mídia. E esse é apenas um dos elementos que atestam o quanto essa obra é icônica, marcou época e reverberou para muito além.

Anos antes de surgir o conceito de Sociedade do Espetáculo (concebido em 1967, pelo francês Guy Debord) Fellini já o trazia representado através das personagens e situações de La Dolce Vita. O filme mostra o início da Era hiper-midiatizada, onde os interesses e as atitudes genuínas se confundem na busca pelo afeto e pela realização dos desejos numa sociedade hedonista e culturalmente predatória. Decadência e glamour se encontram e andam de mãos dadas com a ironia e a ambivalência – o que proporciona sequências únicas, de humor sofisticado e também corrosivo.

Em muitos momentos esse sarcasmo ferino e sagaz soa hilário, um deboche estilizado que faz com que o espectador se identifique e ria das situações insólitas. Há também um olhar um tanto melancólico sobre a vida, reflexivo, por vezes cínico, mas sem prescindir da beleza e da profundidade das vivências – a ótica de Fellini é repleta de poesia, é também sensorial.

Cada plano desse filme, cada expressão dos atores, o direcionamento do roteiro, a trilha sonora, a inovação na abordagem no respectivo período histórico, tudo converge para a construção de uma obra-prima, um filme que influenciaria mais de uma geração de cineastas e ficaria cristalizado nas referências culturais do meio artístico – no cinematográfico sobretudo.

O olhar apurado, sensível e muito perspicaz de Fellini transforma esse filme no prelúdio cinematográfico dos tempos líquidos e efêmeros que surgiriam mais adiante, onde os afetos autênticos estão cada vez mais raros e as pessoas se relacionam ao sabor das circunstâncias e interesses momentâneos, com uma forte cultura midiática permeando todas as esferas da vida.

La Dolce Vita, entretanto, não é um filme sobre frieza, muito pelo contrário. É, essencialmente, sobre a busca pelo sentimento substancial, seja nos espaços onde se transita ou na convivência com o outro, a procura por um respiro em meio ao frenesi das emoções forjadas na superficialidade e na irreverência de um contato efêmero. A cena final é simbólica dessa acepção fílmica.

Uma belíssima composição de imagens, símbolos, elenco primoroso, sequências antológicas e um marco na cinematografia em todos os tempos, que segue atual e inspirando obras notáveis, como o recente A Grande Beleza (Itália, 2013. Direção: Paolo Sorrentino), vencedor do Oscar de filme estrangeiro. Os clássicos nunca envelhecem.