Maria Valéria diz que quis escrever sobre “o avesso da cidade” no livro Quarenta Dias

Penúltimo livro de Maria Valéria Rezende, Quarenta Dias é a obra pela qual ela foi mais projetada, inquirida, referenciada, festejada na mídia e no circuito literário brasileiro nos últimos meses. Foi lançado em 2014 e em 2016 ela já tem a próxima produção engatilhada, guardada como um trunfo: o livro Outros Cantos. A vitória inesperada – por ela própria e pela sua editora – do prêmio Jabuti de melhor romance de 2015 fez com que centenas de curiosos quisessem saber mais sobre essa mulher incomum que vive fora do eixo dos grandes produtores de literatura no Brasil – e escreveu uma história que também vai nessa linha.

Quarenta Dias narra a história de uma professora aposentada que, já na maturidade, abandona e renuncia à especificidade da sua vida em João Pessoa para ajudar a cuidar do neto não-planejado, gerado pela filha que mora Porta Alegre e que lhe fez essa intimação consanguínea. Valéria revela que foi maturando a história ao longo de uma década. “É um longo e tortuoso processo, faz dez anos que eu estou escrevendo esse livro na minha cabeça”, diz ela utilizando os verbos no presente, numa demonstração de que essa história permanece ainda muito fresca – e muita viva – na sua memória emocional e subjetiva.

Sobre esse processo de construção do enredo do livro, ela conta que uma noite, há mais de dez anos, em João Pessoa, atendeu uma ligação que a levou ao Hospital do Trauma e lá ela se deparou com a realidade de várias mulheres dos pacientes que eram levados para atendimento emergencial. À época não havia saguão de entrada no prédio e elas ficavam à deriva, mal acomodadas sob o meio-fio da calçadinha do hospital e do heliporto. Eram figuras socialmente vulneráveis, similares e diversas ao mesmo tempo. Cada uma tinha uma história, cada uma trazia uma estrutura de drama pessoal diferente. Passou 48 horas auxiliando essas mulheres, imergindo completamente naquela realidade, “mas poderia ter passado 40 dias”, destaca ela.

“Comecei a descobrir que a cidade era cheia de buracos e rachaduras. Assim, você passa por uma rua que você sempre passou e você nunca reparou que tinha um bequinho (sic) entre duas casas, tem um metro e meio de largura, se passar por ali você cai noutro mundo, você percebe que tem gente vivendo ali de outra maneira que você nunca percebeu (antes). Existe isso por aqui, existe isso em João Pessoa. Fiquei com essa ideia na cabeça”, relembra.

“Voltei pra casa com dois sentimentos: quanta coisa a cidade esconde em seu avesso e a gente passa e nem vê – e são os que sofrem mais -, essa consciência de que a cidade escondida toda uma população invisível”, reflete Valéria.

Ela cita uma referência alegórica na qual construiu o alicerce narrativo de Quarenta Dias. “Tive a ideia de escrever um romance que explorasse as rachaduras e os buracos por onde o coelho da Alice passa para um outro mundo. A referência de Alice no País das Maravilhas me veio logo no começo: você cai num buraco inesperado e sai num outro mundo, é o avesso da cidade”, explica.

Partindo dessa premissa, Maria Valéria decidiu escolher Porto Alegre como a cidade-sede do seu romance. “Eu sabia que eu não poderia fazer isso com João Pessoa porque é pequena demais e eu já conheço demais – e eu tinha de ter a sensação do desconhecido”, complementa.

Ela aproveita para esclarecer um factoide que circulou na imprensa de que, para escrever esse romance, ela teria dormido nas ruas da capital gaúcha por alguns dias. “Fui me embora para Porto Alegre e andei pelas ruas, passei noites no saguão do pronto-socorro. O pessoal diz que eu dormi na rua, lógico que eu não dormi na rua! Eu não estava na rua pra dormir, eu estava para ver como que é que era (o que estava acontecendo ao redor) – eu nem seria capaz de dormir”, enfatiza.

“Eu passei algumas noites (acordada) na rua, mas não ao relento. Só uma vez que eu fiquei na porta de uma Igreja até o amanhecer. Teve outra vez que passei a noite deitada em um ponto de ônibus, me deitei ali como se estivesse dormindo e fiquei olhando o que acontecia, qual a sensação que é. Mas não cheguei a dormir na rua”, acrescenta sobre seu “laboratório” literário. Ela revela que escreveu as 70 primeiras páginas de Quarenta Dias em João Pessoa, fez essa imersão humana em Porto Alegre e depois retornou a capital paraibana para concluir a obra.

Valéria diz não se preocupar com a extensão de um livro, mas em contar uma boa história no espaço necessário para isso, que podem ser 400 páginas ou apenas 40. “Não preciso que o livro seja grosso, preciso que ele seja legível e que eu goste de lê-lo” conclui.