Vi novos quadros de Flávio Tavares que sugerem uma reinvenção do espaço lógico do desenho, fenômeno que acontece em dupla relação ou movimento. A primeira dessas relações, exterior às especificidades de sua obra, dialoga com o campo representacional histórico em que o desenho se faz linha essencial contra o fundo branco do espaço ocupado para explicitação da forma contra a matéria indiferenciada da visualidade em busca do sentido poético.

Nesse diálogo, o artista paraibano exibe a técnica poderosa de alguém no auge do domínio da expressão. A economia do traço com o sabor da leveza remete à consciência das nuances domadas dos (des)equilíbrios simétricos que proporcionam o fluxo da fruição dos detalhes simbólicos nos eixos de sentido de cada obra.

A gesticulação criadora é uma busca obsessiva de harmonia no espaço de maneira a conquistar uma integração complexa das forças visuais no embate realizador. A narratividade possível da cenografia do ser em ação na tela é a da contenção dos limites da diversidade de formas em favor da intensidade da expressão.

Nesses novos quadros, a beleza continua o pressuposto de um idioma criado pelo artista com toda diversidade emotiva, de expressão, composicional organizativa e estético-formal de uma língua inédita para dizer de um sentimento de liberdade que se inicia no fervor da corporeidade excitada pelo existir ideal da tela e vai até a consciência do sonho enquanto espaço utópico de realizações sensoriais e racionais.

A segunda relação, interior, extrai dos seus fundamentos estilísticos, e de identidade, a energia que reconfigura elementos importantes da obra de um pintor que tem seu repertório imaginativo sempre em expansão. Elementos como onirismo meditativo, simbologia metafísica, exaltação mística, adensamento e profundidade das cores, morfogenia híbrida na organização dos seres atemporais imersos em mistério e autoconfiança, a ironia, a sensualidade e o erotismo de uma psicologia especulativa onde categorias a exemplo de significado e valor se relativizam no tempo e no espaço, isso que torna Flávio Tavares uma referência internacional, estão todos em quadros que vi e que integram a exposição “A linha do sonho”.

Não escrevo sobre o conjunto inteiro da exposição que aconteceu em João Pessoa e se encontra atualmente em Sousa. Mas sei que o registro do maravilhoso enquanto gênero para agregar o transcendental e o ordinário, para dizer o ideológico embarcado na espacialização da obra no suporte, e para celebrar a consciência do artista frente às peculiaridades da conjuntura em que a arte acontece, esse registro que é uma certeza amplamente difundida e aplaudida na linguagem de Flávio, está na integralidade da mostra. Refiro-me especificamente, no entanto, aos desenhos realizados num campo de cor chapada, principalmente aqueles em que identifiquei a inversão do espaço lógico do desenho produzidos sobre um fundo negro.

 

 

 

 

 

 

Nessa operação, Flávio Tavares confirma, como já afirmei, domínio técnico e sensibilidade poética, mas avança no manejo dos elementos constitutivos do seu estilo para conceber nos quadros alguns resultados inéditos ou quase pouco presentes na obra que ele propõe à sociedade. Quanto à inversão da lógica, ou talvez seja melhor dizer reconfiguração, ou experimentação provocativa da lógica expositiva tradicional do desenho, ela ocorre, ao meu ver, primeiro numa explicitação das grandezas do dinamismo figura-fundo que atinge a radicalidade.

Sobre o preto, ou também nos chapados em vermelho, acontece a supressão das hierarquias narrativas de um real marcado pela presentificação da natureza e da cultura na arte, num resgate subliminar talvez inconsciente, mas creio que intencional, da transgressão histórica com a qual alguns especialistas dizem que Manet inaugura um dos ciclos da modernidade.

O Tocador de Pífanos, de Manet

Refiro-me ao fenômeno da dinâmica figura-fundo que Manet desvela em “O Tocador de Pífanos”, uma das estrelas do “Salão dos Recusados de Paris” de 1866, há 240 anos. No quadro, ele simplesmente revoga a profundidade. Aliado a essa referência histórica incidental, o fundo chapado preto evoca a objetivação de um desconstrucionismo praticado por Malevich no ainda hoje polêmico “Quadrado Negro Suprematista”, de 1915, símbolo de um laconismo típico da asfixia do tempo provocado pela guerra. E as linhas coloridas com as quais Flávio Tavares desenha insere alguns quadros tanto no campo da arte cinética, pelas trepidações óticas que as linhas provocam, quanto na esfera da psicodelia. Ao festejar 50 anos de carreira artística, Flávio se apresenta asa da contemporaneidade para novas conexões icônicas e roteador de provocações num tempo dissoluto. Um artista para todos os tempos.

Reproduzido de o jornal A União, edição 18 de julho de 2017