4ª temporada: “House of Cards” se supera

Desde a primeira temporada de House of Cards vemos o casal Claire e Frank Underwood ser escrutinado: suas emoções, motivações, a sintonia, a cumplicidade, as disputas, a parceria estratégica no jogo político e na vida. Não há House of Cards sem os dois, ambos estão intrínseca e indissociavelmente ligados, seja por interesse, afeto ou pura necessidade, instinto mútuo de sobrevivência.

A terceira temporada deu a deixa e a quarta, minha nossa, é daquelas que você é levado a ver de um fôlego só – eu quase fiz isso, precisei de dois dias para assimilar tudo. É, sem sombra de dúvidas, a melhor e mais reveladora da real natureza e simbolismo da série e de suas duas principais personagens.

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Claire (Robin Wright) e Frank Underwood (Kevin Space). Personagens unidos pelo afeto e pela poder. Juntos , são a alma de House of Cards.

Acho que talvez nunca antes na história dos seriados, os jogos de poder tenham sido explorados de forma tão dinâmica, mirabolante e ao mesmo tempo realista, o que a torna extremamente atrativa. Entre o absurdo, o inacreditável e a realidade factual, a linha que os separa pode ser deveras tênue.

As articulações no centro do poder mostradas na série, as circunstâncias que conduzem a disputa ora para um lado, ora para outro, são o exemplo mais claro de como a correlação de forças acontece na chamada real politik, a política crua e pragmática, em seu estado mais bruto, sem disfarces ou atenuantes.

Na quarta temporada, vemos os desdobramentos das eleições primárias, o processo em que o Partido Democrata e o Republicano, os dois principais dos EUA, votam para escolha dos seus respectivos candidatos a presidência. Depois há uma guinada, o chamado “ponto de virada”, que é quando a dinâmica de uma obra dramatúrgica é subvertida e mostra sua real preponderância. A sequência da narrativa se estabelece com a campanha eleitoral propriamente dita e os eventos paralelos que a permeiam.

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#WeLoveClaire A personagem de Robin Wright é o elemento-chave da quarta temporada de House of Cards.

Nesse contexto, Claire Underwood assume a linha de frente e imprime um protagonismo mais explícito, que se configura de forma ainda mais incisiva. O que se efetivava nos bastidores – e numa posição, de certo modo, secundária – agora se mostra na sua forma mais coerente: ela está ao lado de Frank, em igualdade de condições e de poder de decisão. Ela mostra que os dois juntos separados serão sempre falhos e incompletos, mas que juntos podem ser imbatíveis e debelar todas as intempéries e os muitos inimigos criados na escalada rumo ao poder – feita também com o sangue de vítimas ocasionais.

À conclusão do último episódio dessa eletrizante e, primorosamente construída, quarta temporada de House of Cards, Claire e Frank se tornam partes de uma mesma persona, que confluem quando o assunto é a luta pelo poder e pela sobrevivência.

A chamada quarta parede, o elemento abstrato que separa o público da ação cênica, que desde o primeiro episódio da primeira temporada da série é ultrapassada por Frank, que tem um diálogo constante e direto com o público, numa metalinguagem extraordinariamente personificada por Kevin Space, também cai, momentaneamente, para Claire. Robin Wright, aliás, merece todos os créditos pela sua performance cada vez mais brilhante, que causa uma empatia quase tão forte quanto a popularidade da sua personagem junto aos concidadãos americanos, mesmo na pele de uma figura que demonstra ambiguidade latente.

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A veterana e premiada atriz Ellen Burstyn, conhecida por filmes como Réquiem Para Um Sonho, aparece na 4ª temporada de House of Cards como a mãe de Claire.

Num elenco que tem Kevin Space e Robin Wright à frente, também se destacaram nesta temporada coadjuvantes de luxo como a veterana Ellen Burstyn, maravilhosa como a mãe de Claire, e a atriz ícone teen dos anos 90, Neve Campbel, como uma charmosa e audaciosa consultora política. O Doug Stamper de Michael Kelly, o fiel escudeiro de Frank, ganhou mais destaque nessa temporada, com o aspecto humano e suas matizes dramáticas mais à mostra.

A democracia institucional e as circunstâncias e métodos para mantê-la real como ela é, com seus méritos, mas sobretudo suas idiossincrasias, podem ser realmente chocantes. Essa é talvez a mensagem mais eloquente que se vê no encerramento dessa quarta temporada. Nada na política e nas relações de poder é feito ao acaso. Tudo faz parte de uma imensa engrenagem que permanece sempre a mesma, muda-se apenas o propósito e seus operadores – mas o modus operandi parece ser imutável.

Há esperança diante dessa superestrutura? Essa é uma resposta que a série não dá, já que passa longe de maniqueismos e soluções muito idealizadas, mas deixa claro à la Crime e Castigo e Os Irmãos Karamazov, de Dostoiévski, que as nossas ações sempre cobram seu preço – seja ele o justo ou não, cedo ou tarde.

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Claire e Frank no olho do furacão e no centro do poder. Unidos, formam uma dupla dura de bater e que vai até as ultimas consequências.

Em House of Cards, a analogia que se faz com a realidade factual, ainda que se pondere algumas questões, licenças poéticas e nítidos exageros, é um tanto aterradora, dada a semelhança intencional e muito sagaz com acontecimentos da realidade política contemporânea. A frase dita por Frank no início da segunda temporada nunca fez tanto sentido, sobretudo na cena final desta última temporada: “Democracy is so overrated” (A democracia é tão superestimada).

O poder e a busca por alcançá-lo ou por mantê-lo, não conhece limites. Se bem manietada, é algo que pode se estabelecer cinicamente em forma de vontade, liberdade e de bem-estar coletivo. Verdades inconvenientes são frequentemente camufladas e tornadas palatáveis com mentiras reconfortantes –  e boa parte de quem está em volta lava as mãos no melhor estilo Pôncio Pilatos. E assim o mundo gira.