Há três anos, país também perdia Oscar Niemeyer, o homem que projetou Brasília

Há três anos, no dia 5 de dezembro, aos 105 anos, morria Oscar Niemeyer. Com o falecimento de Oscar Niemeyer, uma espécie de último dos moicanos, o Brasil do século XX definitivamente virou passado. Toda a geração de fundadores do Brasil moderno desapareceu, enfim, já não se encontra em carne viva entre nós. No dia de hoje, convido o leitor apreciar a obra imorredoura e cultuar a memória de um Brasil que já foi.

Minha primeira lembrança forte de Niemeyer não vem da arquitetura, mas do personagem Marcos, o arquiteto comunista do romance “Subterrâneos da liberdade”, de Jorge Amado. Jovem adversário do regime de Estado Novo, Marcos, alter-ego de Oscar, participava do combate clandestino à ditadura de Vargas, protegendo no abrigo de seu escritório amigos comunistas perseguidos pela polícia. O retrato de Marcos pintado por Amado é a um companheiro de viagem oriundo do mundo e dos hábitos burgueses, mas carregado de sentimento de solidariedade e justiça.

Por outro lado, o arquiteto de vida legal e profissional ascendente merecia a confiança da vertente renovadora regime. Niemeyer participou de projetos estéticos ousados do Estado Novo, como o prédio do Ministério da Educação no Rio de Janeiro (o Palácio Capanema), compondo a equipe do urbanista Lúcio Costa e sob a consultoria Le Corbusier. A genialidade logo detectada lhe rendeu o voo solo, na formulação do projeto do Parque da Pampulha em Belo Horizonte, do jovem prefeito Juscelino Kubitschek, um político promissor que começou como interventor servindo à Vargas. Quando o PCB voltou à lua do dia, em 1945, ele assinou a ficha de filiação ao partido, embora, jamais tenha sido um dirigente partidário, uma liderança de aparelho, divulgou até morrer a causa do comunismo.

Apesar da ditadura, havia um complexo e contraditório espaço de colaboração entre os intelectuais e o regime, tema explorado originalmente nos escritos do sociólogo Sérgio Miceli, dando conta as colaborações de Graciliano Ramos (ex-preso político) até, por exemplo, Candido Portinari. A colaboração dos intelectuais tinha raízes históricas, mas também estruturais. É bom perceber que a partir de 1942 (com a adesão do Brasil aos aliados, especialmente os Estados Unidos) abriu-se um período de colaboração interna de todos os setores contrários ao nazifascismo. Mesmo na prisão e vivendo um processo de luta interna, a disposição para a colaboração contagiou a maioria dos comunistas, conforme se pode ler na vasta bibliografia a respeito.

Porém, deve-ser levar em consideração os motivos estruturais. O crítico literário Antonio Candido (94 anos), último companheiro de sobrevida de Niemeyer, cunhou uma expressão interessante para descrever o colaboracionismo dos intelectuais progressistas de sua geração – o “balancê”. As estruturas da modernidade brasileira, em uma sociedade rural e atrasada, de classes sociais urbanas pouco desenvolvidas e precarizadas, estavam sendo criadas pelo Estado. Nos termos de Gramsci, as classes brasileiras ainda não desenvolveram seus intelectuais orgânicos. Por isso, os intelectuais do modernismo sempre se viram na iminência de colaborar com o Estado ou sucumbir à irrelevância. À esquerda ou à direita, os intelectuais vão girando por sobre as frágeis estruturas de classes, por dentro do Estado.

O caso mais clássico do “balancê” dos intelectuais é precisamente o fornecido pela arquitetura, inteiramente dependente, nos tempos heróicos da formação do capitalismo brasileiro, das encomendas públicas (em alguns casos, a convivência com o Estado se apaziguava sob a forma do concurso público de cartas marcadas). Qual o significado de Brasília, a cidade monumental de Niemeyer senão a maior encomenda pública do Estado brasileiro já feito a um artista?

A arquitetura de Niemeyer tem a culminância do romance de Guimarães Rosa ou a poesia de Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto, as três maiores criações da moderna literatura brasileira. Nela reside um paradoxo: embora o projeto de Niemeyer pretenda tornar belas as formas do concreto, são monumentos racionalizados, uma mistura de planejamento e utopia que parecem não terem sido feitos para o homem habitar, mas admirar, com já foi notado por muita gente, a exemplo da poeta norte-americana (e lacerdista de carteirinha, no tempo em que residiu no Brasil) Elizabeth Bishop. Favor não confundir habitabilidade com conforto burguês.

Comunista e admirador de Stálin que jamais se engajou no realismo socialista (disse diretamente aos soviéticos que a arquitetura deles era péssima), reproduziu em outro registro estético, este hedonista e libertário, o maquinismo da sociedade industrial. Separo o que aconteceu aos monumentos de Niemeyer espalhados pelo mundo (admiráveis aos olhos do turista aprendiz) do caso vivo de Brasília, a exceção da regra. Explico-me. A racionalidade utópica e burocrática do Plano Piloto de Brasília (produto da parceira com Lúcio Costa e o esquecido poeta-calculista Joaquim Cardoso) foi sendo domada por seus habitantes aos poucos e em pedaços, da periferia para o centro. Parafraseando Clarice Lispector, quando foi criada, Brasília não tinha o homem de Brasília. Mas ele surgiu na primeira geração autóctone do planalto central, no encalço das redes espontâneas que quase toda cidade cria. O “rock Brasília” (Legião Urbana e Paralamas do Sucesso, Renato Russo e Herbert Vianna, entre muitos) pode ser livremente interpretado como a luta para humanizar a modernidade utópica de Brasília. Não há pedra dura que não amoleça.

Felizmente ou infelizmente, passou a moda da arquitetura de Niemeyer, que doravante passou a se confrontar contra a parede da dinâmica urbanista do futuro, mais caótica e, à falta de uma melhor expressão, pós-moderna. É como se arquitetura de Niemeyer fosse movida a fundo público e a pós-moderna ao movimento do capital. O projeto utópico e racionalista de Niemeyer, com o passar do tempo, transformou-se mais em pretérito que futuro. Ele morre deixando saudades do futuro que não tivemos.