“Espectros do fundamentalismo” é novo texto da coluna de Jaldes Meneses

As três grandes religiões monoteístas – o judaísmo, o cristianismo e o islamismo – nasceram na mesma região e, a par de diferenças, de que logo tratarei em traços de gigantesco grau de generalidade, possuem similitudes históricas e filosóficas de tal ordem que se pode detectar sem erro uma zona de trânsito na qual se pode praticar o ecumenismo e, melhor ainda, o respeito à diversidade. Infelizmente, os tempos do mundo não são favoráveis aos ares do ecumenismo e da diversidade: o fundamentalismo em geral – e não somente o fundamentalismo de origem na religião islâmica –, conquanto em ritmos diferentes, cresce como rastilho de pólvora.

Começo por nossa casa, os cristãos. Depois do aggiornamento produzido nas práticas da Igreja Católica – inclusive em direção do ecumenismo e do respeito do sincretismo religioso – , a partir do revolucionário Concilio Vaticano II (1961-1965), na época dos extraordinários papados de João XXIII e Paulo VI, a renovação católica recrudesceu nos papados de João Paulo II e Bento XVI. Ainda bem, com a assunção desse formidável Papa Francisco, a Igreja – ou ao menos o seu mais alto representante -, retomou as ideias perdidas de João XXIII e, até certo ponto, Paulo VI.

Acossado pela crise dos valores da sociabilidade capitalista, ocidental e cristã, a resposta da alta cúpula católica, a famosa Cúria Romana, cujos mais máximos representantes foram João Paulo II e Bento XVI, no fundo e em forma, é eminentemente defensiva de guarnição de fronteiras: trata-se de uma operação de enrijecer os dogmas, proteger as fronteiras internas da contaminação externa através da tentativa de formação de um exército cristão de poucos e bons.  A operação de guarnição de fronteiras, aliás, vem a ser o motivo explicação de a religião com o maior número de adeptos no mundo (dois bilhões e meio de adeptos), exatamente o cristianismo, ter batido no teto e deixou de cresceu. O católico ideal dos conservadores é uma espécie em extinção. Ateu, mas atento as religiões, costumo brincar com mais alunos que pelos critérios de conhecimento teológico e cumprimentos das obrigações da liturgia exigidos pela cúpula conservadora católica, devem existir no Brasil, no máximo, uns 200 mil católicos.

Neste aspecto, o roteiro traçado por Bento XVI (o teólogo conservador alemão Joseph Ratzinger), que ainda se mantém firme como dissidência antifrancisco na maioria do alto clero, é sugestivo: o discurso dos próceres do alto clero romano é todo voltado à conservação sem transformação e resistência ao secularismo. Conservação da Europa, espaço de origem dessas ideias, como espaço de uma identidade cristã ainda semimedieval, avesso a quaisquer multiculturalismos. Trata-se, enfim, de uma confraria cheirando a mofo e pó, saudosista dos tempos da formação da chamada cristandade ocidental, principalmente das batalhas levadas a cabo pelos franceses e o antigo império sacro germânico contra o s invasores muçulmanos.

Este projeto reacionário tem uma evidente reverberação filosófica e política: no tocante à filosofia, a racionalidade, como uma espécie de razão soberba, é subsumida a um apanágio cultural quase exclusivo do cristianismo, que as demais formações civilizacionais precisam aprender conosco, quanto à política, Europa e cristianismo são vistos como sinônimos, – por isso, o veto à entrada da Turquia na Comunidade Européia e na zona do Euro e as atitudes de repúdio às levas recentes de refugiados da guerra da Síria.

Contudo, o alto clero romano é somente a versão erudita do fundamentalismo (ou integrismo) cristão de que todo ele. Na verdade, a própria origem da palavra – fundamentalismo – radica nos agrupamentos pentecostais, adventistas e mórmons norteamericanos, cuja mensagem milenarista e antimoderna –, e pode ser resumida e vislumbrada nas teses da corrupção dos costumes morais como índice do iminente do fim do mundo. Embora esta seja uma ideologia defensiva, a mensagem de proteção do vasto e perigoso mundo lá de fora, empolga amplos setores sociais que preferem a segurança à aventura. Trata-se também de repositório e de cultura de diversas formas de fascismo e populismos e da bem sucedida aparição de novos personagens políticos que exploram, histéricos como só um referendo pregando o apocalipse, a mensagem da chamada “ família cristã”.

Tudo isso para que lembrar que o fenômeno do fundamentalismo religioso não é adstrito nem exclusivo ao mundo islâmico ou a excrescência bárbara do Estado Islâmico, embora se devam reconhecer, quanto a secularismo e laicidade das instituições, duas diferenças históricas fundamentais entre “nós” (cristãos – à maneira de Benedetto Croce me considero “um ateu do cristianismo) e “eles” (Islã).

Em primeiro lugar, parafraseando Nietzsche em Assim falou Zaratustra”, no Islã, no essencial “Deus ainda não morreu”. Ou seja, o caminho de secularização e laicização, que Weber, entre nostálgico e romântico, denominou de “desencantamento do mundo”, empacou no mundo muçulmano, principalmente no item de separação entra a terra e os céus, o poder dos homens (o Estado) e o poder divino (a religião).

Em seguida, contribui para esse truncamento, embora não explique, nem de longe, todo ele, a evidência de haver uma diferença de fundamento entre Jesus Cristo e Maomé – Feuerbach considerava essa diferença uma “vantagem comparativa” do cristianismo. É o seguinte: Jesus era o filho de Deus, poder espiritual – o poder de Jesus não é desse mundo – , enquanto Maomé foi profeta em Meca e general em Medina. Poder espiritual e temporal encarnam na mesma figura profética de Maomé.

Em resumo, face ao poder do homens, a ideia original de Jesus Cristo encarna a transcendência da santíssima trindade, enquanto Maomé vem surge no mundo como profeta da mensagem de Alá e fundador de um Estado.

Ao trazer questões da origem das religiões e dos textos sagrados, não pretendo, é claro, esquecer da ação dos diversos imperialismos no oriente médio, Ásia e África. Muito menos, resumir o longo trajeto de secularização do ocidente às determinações únicas emanadas da figura de Cristo, esquecendo que Roma transformou por séculos o catolicismo em religião de Estado. Nem me esqueço das batalhas das tendências minoritárias de modernidade e secularização no mundo muçulmano. Apenas estou colocando mais um argumento no debate – a evidência de o espectro da simbiose Estado/Religião ter se tornado historicamente mais presente  na mensagem profética do Islã que na do cristianismo, à faticidade da história contada de o profeta também ser um general, o organizador de um exército bem-sucedido, bem como o fundador de um Estado à maneira de um Lênin.

O Daesh, como prefere nomear o clero muçulmano oficial o desatino da pretensão de criar um novo Califado em pleno século XXI (o Estado Islâmico), que prega a um bilhão meio de adeptos uma mensagem de paz, nada tem a ver com a vertente fanática dos novos jihadistas pós-modernos; no entanto, o terrorismo que vai buscar como pretexto de sua ações as palavras do Alcorão e de Maomé só consegue funcionar como ideologia (portanto, como mentira ou meia verdade) remetendo às peripécias de guerra do profeta em Medina.