Cultura Gospel no orçamento da FUNJOPE?

Sim, o Estado é laico. Pero, no mucho. Aliás, cada vez menos. A cada dia as religiões, principalmente pentecostais, vão tomando conta das mídias. Não tenho dúvidas. É uma forte sinalização. Seria a fé no poder superando a fé em Deus? Em alguns casos, sim. As comunidades estão inundadas de falsos profetas conforme relata a Bíblia. Mas, não vamos generalizar. A verdade é que a cada eleição o fundamentalismo religioso se aproxima mais e mais do comando das estruturas públicas. As últimas eleições deram um recado. Vejo isso com muita preocupação. Afinal, é o projeto dos que quebram estatuetas de santos católicos e demonizam a religiosidade de matriz africana avançando sobre tantos silêncios. Vejo claramente um quadro de consolidação política da intolerância. Não nos espantemos, pois, com as ações do Estado Islâmico. Naquele lado do mundo as crenças radicais afeitas a ação política já mostraram do que são capazes. Mas, essa alquimia é não é de hoje. A mistura da religião com a política é um assunto antigo- e bélico. Até mesmo alguns messiânicos rezadores nordestinos eram, também, chefes políticos em suas regiões.  Nem o Padre Cícero escapou.

Mas, agora essa disputa chegou na cultura. Está posta na cidade de João Pessoa. Alguns segmentos evangélicos começam a demarcar espaços na disputa dos parcos recursos destinados para a diversidade cultural pessoense. Está lá o QDD (Quadro de Detalhamento de Despesas) para 2017 que não nos deixa mentir.

A Cultura Gospel vem do século XIX. Começou entre os negros do sul dos Estados Unidos. O mesmo berço do blues que revelou artistas como Bessie Smith. Assim como a Arte Sacra, a Cultura Gospel construiu seus mitos e gênios. Não vamos menosprezar essa realidade. Também não vamos jogar a nossa contestação no balde do preconceito religioso. Estamos falando exatamente do contrário. Falo da diversidade cultural, religiosa e humana. Falo da diversidade de entendimento sobre o mundo que habitamos. Portanto, o assunto central nem é religião. Mas, orçamento público. Que fique claro. A verdade é que os agentes políticos que fizeram essa ponte, não solicitaram a ampliação do orçamento para a cultura. Mas, a sua subtração ao privilegiar um segmento politicamente muito poderoso.  Vamos aos fatos: a Fundação Cultural de João Pessoa – FUNJOPE, colocou no QDD, para 2017, a promoção da Cultura Gospel em seus diversos segmentos, perpassando por vários programas. Também o apoio para a realização de evento religioso comemorativo aos 500 anos da Reforma Protestante. E mais: apoio para a realização de evento cultural de cunho religioso idealizado pelo Ministério Missionário Juventude Evangélica Paraibana – Congresso JUVEP 2017. Claro que não vou contestar de forma alguma as escolhas pessoais. Só não vamos nos esconder da realidade e nem do debate. Houve certamente um acordo político para que isso acontecesse. Creiam, não foi um ato de bondade ou maldade. Até parece que a Prefeitura está fazendo um tipo de pagamento. Calma. Só parece. Afinal, a tradicional Festa de Iemanjá não teve a mesma sorte. Não consta no orçamento da Fundação. Tenho o maior respeito pela religiosidade enquanto direito social e individual. A afliçãoé esse tipo de privilégio em um orçamento público. Uma intervenção, sobretudo política, num segmento estratégico que tem demonstrado muita dificuldade na decolagem dos seus sonhos. As fragilidades da pele abriram espaço para a navalha. Algo precisa ser dito: cultura não é religião e qualquer religião jamais poderá pontuar, segmentar ou direcionar uma política de cultura. Criaram um nicho muito esquisito no orçamento da FUNJOPE. E os demais segmentos? E as demais religiões? Enfim, não me parece consequente e muito menos democrático.  Orçamento público deve ser pensado para a atender a diversidade humana que nos cerca. Não pode servir para estreitar caminhos e consagrar especificidades.

Mas, vamos também estabelecer algumas diferenças. Não há como não reconhecer a presença evangélica nas mais diversas linguagens artísticas. Alguns, diga-se de passagem, com imensa e reconhecida qualidade. Só que os méritos são pessoais e não do segmento. Ninguém é um bom escritor ou um bom músico, apenas por ser religioso. Na Orquestra Sinfônica da Paraíba existem alguns músicos evangélicos que executam com maestria e profissionalismo Oração Aos Orixás, de José Siqueira.É um exemplo do que digo. Ou seja: a arte nas suas mais diversas expressões não interfere nas opções individuais de religiosidade, sexualidade, ideologia, etc. O contrário também não pode ocorrer. Em 2007, realizou-se em João Pessoa o II Encontro Nordestino de Hip-Hop. Na época me surpreendi com a quantidade de artistas do RAP cantando para Jesus. O convívio com os manos e as minas de outras tendências, no entanto, foi pacífico e produtivo. E aí: vamos rachar o Hip-Hop? Já vi bandas de Heavy Metal Gospel pauleira se apresentando em eventos de rock. Nas livrarias, as literaturas religiosas ou de autoajuda, são abundantes. Nada contra. Mercado é mercado. Guerra é guerra. Vale o que vende. Mas, política pública é política pública. O privilégio de um determinado segmento num orçamento público, certamente, subtrai os demais. Que isto fique bem claro. Algo a ser debatido e pensado com mais profundidade. Principalmente porque estamos vivendo tempos de criminalização da arte e da cultura. As políticas públicas de cultura desenhadas desde o governo Lula estão sendo riscadas do mapa. O financiamento da cultura brasileira está sendo resumido à controversa Lei Rouanet. Secretarias de Cultura estão sendo fechadas. O debate cultural está sendo diluído debaixo dos nossos olhos. Esse tipo de segmentação orçamentária deveria ter sido submetido ao Conselho Municipal de Políticas Culturais de João Pessoa, que aliás, deverá se posicionar sobre isso.

Conheço artistas de diversas religiões. Gente de importância imensa, cujo fundamento da sua existência é a arte. Religião é uma opção pessoal. Até mesmo Roberto Carlos, em muitas das suas canções, expressa sua devoção católica. Mas, Roberto Carlos é um artista do mercado. Não depende de políticas públicas. É um indivíduo e o que estamos discutindo é o financiamento público. Não vi no QDD da FUNJOPE, por exemplo, referência semelhante à Cultura Negra. Apesar da cidade contar com uma comunidade quilombola.Não há referência para a cultura alternativa que tem, por exemplo, segurado a onda da resistência no Varadouro. O QDD justifica legalmente a forma de execução do orçamento. Ou seja: temos uma decisão, sobretudo, política de legalidade contestável em andamento. Provavelmente fruto de um acordo eleitoral. Afinal, não é admissível esse tipo de privilégio. Não é admissível, também, do ponto de vista da espiritualidade, que a mercantilização da fé tome conta até mesmo dos orçamentos públicos. Vejo tudo isso com imensa preocupação. É como se a cultura estivesse começando a ser varrida do mapa orçamentário a partir da justificativa de incluir um segmento de forma inequivocamente privilegiada. Que portas estão sendo abertas? Quem nos salvará de um futuro acordo político que inclua o Arrocha ou o Axé Music como meta orçamentária? E as vaquejadas que agora são “expressões culturais” definidas politicamente? Seria bacana refletirmos sobre isso.Afinal, como dizia Geraldo Vandré, “a vida não se resume em festivais”.