Colunista relembra momentos marcantes da carreira de Marília Pêra

Acordo hoje perplexo com a notícia da morte da atriz Marília Pêra. Há algumas semanas soube que ela estava com câncer e que o estágio da doença era avançado. Preferi não dar muita credibilidade a informação, já que Marília estava em plena atividade, fazendo teatro e TV, foi homenageada em agosto desse ano no Festival de Cinema de Gramado e demonstrou vitalidade e muita emoção ao receber a honraria das mãos dos filhos. Cantora que também é, além de diretora de teatro, anunciou à ocasião que pretendia gravar um CD com canções de amor.

Justamente por isso, por estar em plena atividade artística, que a morte de Marília nos pega desprevenidos, provoca ampla perplexidade e, como já era de se esperar, comoção. Ninguém estava preparado para receber essa notícia hoje. Contudo, analisando a figura humana que ela era, isso se torna compreensível. Marília sempre foi forte, altiva e imperiosa, não se deixaria definhar publicamente, ser objeto de lamentação pública. Ela era Diva, vigorosa, iluminada e tinha um tanto de vaidade, orgulho e ego inflamados também, mas que não diminuam sua sensibilidade como artista e ser humano. Ela quis partir com a imagem que sempre teve: grandiosa!

No Carnaval de São Paulo 2015, a escola de Samba Mocidade Alegre homenageou Marília Pêra com o enredo “Bravo, Marília”. A escola foi vice-campeã do carnaval paulista

E ela foi grande em várias frentes. Era considerada a dama do teatro brasileiro, mas também teve participações icónicas na TV e no cinema, sobretudo. Por Pixote – A Lei do Mais Fraco (Brasil, 1981. Direção: Hector Babenco), interpretando a prostituta Sueli, ela presenteou o mundo com uma das mais viscerais e extraordinárias performances femininas numa obra cinematográfica. O mergulho dela nas múltiplas facetas da personagem foi tamanho que surpreendeu e comoveu plateias do Brasil e do exterior. Pelo papel, ele recebeu o Prêmio de Melhor Atriz pela Sociedade de Críticos de Cinema dos Estados Unidos (National Society of Critics Awards – USA), em 1982.

Em 2005, Marília Pêra interpretou a estilista francesa Coco Chanel, um dos maiores ícones da história da moda, no espetáculo “Mademoiselle Chanel”. Seu desempenho na peça foi bastante elogiado, ela recebeu vários prêmios e os franceses resolveram montar o espetáculo na França levando Marília como intérprete. (Foto Estadão)

Sua participação em Pixote também lhe rendeu um convite do cineasta Paul Morrisey, (não confundir com Patrick Morrisey, cantor e ex-vocalista do The Smiths), para ser uma das protagonistas do seu filme independente Mixed Blood, interpretando Rita La Punta, a líder de uma gangue de jovens que luta pelo controle de uma zona do tráfico em Nova York. Foi sua única incursão no cinema estrangeiro. Seu primeiro papel no cinema foi no filme vanguardista e experimental O Homem que Comprou o Mundo, de Eduardo Coutinho, em 1968. Marília voltaria a trabalhar com o diretor em Jogo de Cena, docu-drama lançado em 2007. Sua última incursão nas telas do cinema foi em 2008, no filme Polaroides Urbanas, escrito e dirigido pelo amigo Miguel Falabella, com quem ela também compartilha seu último trabalho na TV, o seriado Pé na Cova, onde interpretou a divertidíssima Darlene (assista ao vídeo).

Marília era uma atriz versátil e corajosa. Interpretava desde ícones do glamour como a estilista francesa Coco Chanel, até a prostituta de Pixote, a mocinha romântica de Uma Rosa com Amor e a socialite tresloucada, tranbiqueira e hilária – e muito icônica – Milu, de Cobras e Lagartos, ambas telenovelas de grande sucesso na TV Globo. Foram tantas personagens notáveis, tantas personas singulares que ela emprestou seu corpo e seu enorme talento! Marília era força, combustão, vigor, mas também sabia como poucas personificar a vulnerabilidade do ser humano. Era completa, única, magistral!

Marília em cena clássico do filme Pixote - A Lei do Mais Fraco (Brasil, 1981. Direção: Hector Babenco)
Marília em cena clássica do filme Pixote – A Lei do Mais Fraco (Brasil, 1981. Direção: Hector Babenco)

Há poucos dias, durante a oitava edição do Curta Taquary, conversei com a atriz homenageada pelo festival, a paulista Gilda Nomacce, que lembra bastante Marília Pêra – fisicamente e em cena. Falei com ela sobre essa semelhança, ao que ela me respondeu que se sentia deveras honrada e que Marília fora uma de suas principais influências artísticas. “Quando eu assisti Pixote isso mudou a minha carreira. Marília não tem limites, ela vai para qualquer lugar! (No filme)Ela arrebenta com qualquer preceito: é ridículo, é patético, é sujo, é imoral é decadente, é tudo que você poderia evitar e ela entrou nesses lugares, mergulhou fundo. A Marília é gênia e eu sou uma filha artística dela, bebi muito dessa fonte, ‘mamei’ muito na Marília”, metaforizou ela se referindo a cena clássica de Pixote em que a prostituta Sueli, tal qual uma mãe, oferece o peito para o menino pixote, uma sequência que mistura beleza, marginalidade e uma sensibilidade absurdas, antológica da filmografia nacional – quiçá mundial. Norma relatou a possibilidade interpretar a filha de Marília num filme à ser lançado, que estava na torcida para que isso se concretizasse. A intermitência da morte, entretanto, foi mais rápida.

O teatro sempre foi sua grande paixão. Como atriz nos palcos, é considerada a maior de sua geração. Mesmo com trabalhos regulares em TV e cinema, jamais abandou o gênero. “O teatro é a minha vida. Nem lembro se houve um ano em que eu não tivesse feito teatro. É como se fosse a minha casa”, declarou ela. Ela esteve na histórica montagem de Roda Viva, espetáculo vanguardista e transgressor escrito por Chico Buarque e dirigido por José Celso Martinez. A peça foi proibida pela ditadura e o elenco chegou a ser agredido por militantes de extrema-direita simpatizantes do regime no famoso episódio do “corredor polonês”.  Marília sempre fora ousada e artisticamente subversiva, apaixonada pela Arte.

As cortinas se fecharam, os aplausos inebriaram o ambiente e ressoaram sob o ar, iluminados pelas luzes da ribalta. O último ato de Marília Pêra foi intermitente, repentino, fulminante, mas como em toda a sua trajetória, foi também glorioso, corrosivo, magnânimo. Ela agora descansa no Olimpo dos titãs da Arte. Sua partida deixa uma lacuna que dificilmente será preenchida e entristece muita gente. Vá em Paz, Diva!