Censurado por ex-governador da Paraíba, poema de Paulo Vieira completa 30 anos

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Foto: Arquivo Pessoal/Paulo Vieira

Havia um garoto de 22 anos na cidade de João Pessoa inquieto ao que acontecia ao seu redor. Ele assistia embasbacado a opressão da ditadura militar, a censura nos veículos de comunicação, em que estes não diziam quase nada do que realmente acontecia nas ruas. As vias públicas de João Pessoa, cidade em que guardava amor, padeciam de problemas crônicos de infraestrutura e as autoridades pareciam estar alheios àquela realidade.

Era meados de 1985, tempo em que a ditadura saía de cena para a tão sonhada democracia. Era um garoto universitário, mas que desde a adolescência escrevia poesias de amor. Mas diante da cidade que amava, escreveu seu último poema. Um poema triste, sarcástico, corrosivo, com forte poder de denúncia dos contrastes sociais, da alienação, ideologias plásticas e hipocrisia política. Esse garoto é Paulo Vieira, que se tornou, anos depois daquele 1985 provocativo, dramaturgo e professor universitário. O poema é “A Cidade Perdida”.

O poema foi publicado na revista Presença Literária, que era de responsabilidade da Secretaria Estadual de Educação, na gestão do governador Wilson Braga. A edição que continha este poema era simbólica, pois comemorava os 400 anos da cidade e procurava ter um conteúdo alusivo à data.

Mas o que seria apenas um poema declarando seu amor pela cidade, apontando as críticas de um cidadão que se sentia culpado por não participar ativamente das transformações sociais dela, por não ter entendido o que houvera em 1964 com a tomada dos militares ao poder, pois ele estava ocupado em “bater a primeira punheta”, ganhou repercussão muito maior do que se imaginava. Ao poema, o destino dado foi a incineração. A Paulo, isolamento e preocupação.

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Militares da Escola Superior de Guerra estavam fazendo um tour pelo Nordeste, a fim de checar se estava tudo operando dentro do sistema. Uma dessas paradas foi João Pessoa, em que realizaram um evento. Um dos funcionários da secretaria de Educação, para agradar aos visitantes, resolveu presenteá-los com um mimo: a revista Presença Literária, com o poema “A Cidade Perdida. Ao folhear as páginas, o choque.

Arte: Carol Caldas / Edilane Ferreira Foto: Arquivo Pessoal / Internet
Arte: Carol Caldas / Edilane Ferreira
Foto: Arquivo Pessoal / Internet

“Eu não estava presente, mas uma sobrinha minha estava no Colóquio da Escola Superior de Guerra. O fato é que um tenente se levantou e perguntou ao vice-governador, que estava no evento, se o que estava escrito naquela revista representava o pensamento do Governo do Estado. Ele não entendia do que se tratava e passou a palavra para o secretário de Educação, que também não sabia o que era. Então o oficial resolveu esclarecer e o recitou na íntegra. A minha sobrinha me relatou que o clima era de grande revolta”, relatou Paulo.

Arte: Carol Caldas
Arte: Carol Caldas

Daí em diante, todos os noticiários da cidade dava conta de um “louco” que “desonrava” a cidade, que “deveria ser expulso” ou “ter a cidadania paraibana revogada pela Assembleia Legislativa”. O poema foi lido e tido como algo criminoso. A lembrança ainda é forte para Paulo. “Foram 30 dias em que meu nome não saiu dos xingamentos de todas as rádios e jornais da cidade. Minha mãe ficava desesperada porque tinha um programa de rádio popular que falavam no meu nome todo santo dia. Ela me perguntou “porque você não escreveu uma coisa elogiando? Mas eu era um jovem cheio de fantasias e com uma certa dose de rebeldia também”.

Arte: Carol Caldas / Edilane Ferreira Foto: Arquivo Pessoal / Wellington Farias
Arte: Carol Caldas / Edilane Ferreira
Foto: Arquivo Pessoal / Wellington Farias

A repercussão histérica nas ondas do rádio, nas páginas amareladas dos jornais motivaram o governador para uma atitude histórica e paradoxa ao clima de liberdade que se clamava nas ruas e que estava por chegar. “Ele mandou recolher e teve ordem de incineração da revista. Isso aconteceu no nazismo, quando os livros que não interessavam aos nazistas eram empilhados em praça pública e queimados em uma grande fogueira. Foram chamados de autores degenerados. Eu, autor degenerado, fui queimado numa pilha nazista. Foi uma coisa impressionante”, refletiu.

“A coisa toda ficou irracional”

Antes mesmo da publicação de “A Cidade Perdida”, Paulo e o editor da revista Presença Literária, Juca Pontes, já previam o que poderia acontecer. “Conversamos e foi aí que pensamos que poderiam haver reações. Ele me disse, ‘não, eu estou sabendo, mas é administrável’. Obviamente que seria, se fosse apenas a nível municipal e não a proporção que tomou”, disse.

“Meu olhar para o poema de Paulo sempre foi literário. Não houve nenhuma censura minha ou de tentar discriminar a literatura que era impressa na revista. O que houve foi que a revista foi distribuída num momento inoportuno. Como era uma revista literária, não era o momento para se distribuir num evento como aquele”, pontuou Juca.

Arte: Carol Caldas / Edilane Ferreira Foto: Arquivo Pessoal / Wellington Farias
Arte: Carol Caldas / Edilane Ferreira
Foto: Arquivo Pessoal / Wellington Farias

Enquanto radialistas cuspiam negativamente contra a produção literária de seis páginas de Paulo Viera nos microfones, motivando a população a compartilhar o julgamento ferrenho dela e o recolhimento e queima das revistas, várias setores se manifestaram contrários ao ato.

“Movimentos culturais, políticos, sindicatos, entidades de classe ligados de alguma maneira à cultura, fizeram um manifesto enviado ao governador pedindo que não fosse incinerada a revista e que ela fosse publicada. Mas nem uma coisa, nem outra foram aceitas”, lamentou.

Arte: Carol Caldas / Edilane Ferreira Foto: Arquivo Pessoal / Paulo Vieira
Arte: Carol Caldas / Edilane Ferreira
Foto: Arquivo Pessoal / Paulo Vieira

Mas também houveram heróis da resistência à maioria que condenava. “Meus amigos me enviavam diariamente os recortes de jornais e graças a isso pude fazer um dossiê. A qualidade estética não estava em jogo. Eu acho que quem ainda se expressaram positivamente ou que fizeram uma crítica nesse sentido foram os jornalistas Henrique Magalhães, Walter Galvão, Marcos Tavares e Wellington Pereira. Mas isso passou de forma imperceptível. Henrique, me recordo, escreveu um artigo condenando toda a histeria que tomou conta da cidade. Ele me defendeu muito claramente e defendendo a poesia também. A coisa ficou irracional”, afirmou.

O debate sobre se “A Cidade Perdida” tinha ou não valor literário era muito incipiente. Em julho de 1985, as pessoas ainda não estava preparadas para entender algum valor poético que existia no poema. “A discussão era mas a provocação política, estética do non sense, que não diz nada e ao mesmo tempo diz tudo, a ferinidade (sic) do poema, uma construção poética um tanto quanto caótica, randômica. Tudo isso perturbava muito e isso ficava muito mais numa discussão de caráter político e conservador do que havia propriamente de proposição estética do poema, ou a sua possível forma revolucionária”, explicou.

Arte: Carol Caldas / Edilane Ferreira Foto: Reprodução / Internet
Arte: Carol Caldas / Edilane Ferreira
Foto: Reprodução / Internet

Nesses 30 dias de calvário, Paulo estava em São Paulo e relata que montou um esquema de alerta, pois os familiares e amigos temiam seu desaparecimento. “Me sentia ameaçado. Eu tinha um acordo com a avó da minha filha de que eu ligaria para ela todos os dias, uma vez de manhã e outra à tarde. Se eu deixasse de ligar, ela tinha o contato do meu orientador de mestrado e ela o acionaria. Então era esse o esquema. Era garantir que eu não iria desaparecer”, revelou.

Inquietações e descrenças

O jovem garoto não escreveu o poema de maneira compulsória. Foram fragmentos de vários dias de inquietude, provocação, indignação e encontrou na poesia linguagem para extravasar todas estas sensações.

“Ela não foi escrita de uma vez só. Fiz um trecho, depois fiz outro pedaço. E aí eu fui montando o mosaico fazendo o poema final. Na verdade é muito esquisito porque eu tenho a leve sensação de que há uma certa atualidade do poema no que ele tem de mais inquietante de ordem metafísica, pessoal e social. Essas coisas ainda permanecem e não foram superadas no tempo, nem na história. Isso me faz pensar que não é o poema que está atual. É a cidade, é o país que está atrasado”.

Um dos trechos do poema que explicita uma dessas inquietações é “vossos discursos políticos, as idéias de reforma social, o interesse pelo destino do povo mal esconde a náusea o cheiro vos induz”. Paulo expõe sua descrença à realidade atual. “Confesso que não vejo perspectiva para o Brasil. As coisas estão como estão e permanecerão por muito tempo. Infelizmente. Posso estar errado e até adoraria estar, mas eu creio que nesse trecho não fala de uma coisa específica, fala de uma conjuntura, sabe? Nesse sentido, a conjuntura permanece a mesma”.

Uma declaração de amor à João Pessoa, diz crítico literário

Capa de uma edição do jornal ‘Correio da Paraíba’ com uma nota do manifesto assinado por várias entidades de classe, dentre elas a Associação Paraibana de Impressa, presidida pelo jornalista Carlos Aranha
Capa de uma edição do jornal ‘Correio da Paraíba’ com uma nota do manifesto assinado por várias entidades de classe, dentre elas a Associação Paraibana de Impressa, presidida pelo jornalista Carlos Aranha

Para o crítico literário e poeta Hildeberto Barbosa Filho, “A Cidade Perdida”, de fato tem elementos que ainda persistem no imaginário social e realidade. E vai mais além na sua análise. “Mas ele (o poema) está amarrado a uma circunstância histórica, pois tem a linguagem poética como mecanismo de denúncia de um sistema arbitrário e ao mesmo tempo fazer uma leitura da cidade. Foi uma leitura disfórica (sic), ou seja, não foi para elogiar ou teve intenção de passar uma visão turística da cidade. Foi uma leitura crítica, trazendo à tona uma série de problemas, que inclusive, não foram resolvidos pelos gestores públicos até hoje. Para mim é uma leitura crítica e paródica do momento da cidade, que eu acho pertinente”.

Hildeberto ainda concorda que o poema é, na verdade, uma declaração de amor à cidade, por alguém que a via perdida e padecendo de problemas que seriam facilmente resolvidos caso houvesse engajamento daqueles que estavam no poder. “Ele traz uma visão avessa, desconstrói um certo paradigma oficial, mas em nenhum momento denigre a imagem da cidade. Pelo contrário, é uma forma de ler amorosamente João Pessoa. Apesar de trazer à tona elementos negativos, o poema deixa transparecer uma ligação visceral e afetiva com a cidade e é uma voz que se consolida no poema. A repercussão realmente foi muito tacanha, criaram um estereótipo de um poema que ofendia”, disse.

Mesmo sabendo que os tempos eram de pouca tolerância, Paulo arriscou e demonstra que não há arrependimentos. “É porque existem coisas mais fortes do que o medo. Havia uma vontade de expressão. Não sei se seria capaz de escrever hoje uma poesia que tivesse a mesma contundência. Até porque não se trata de saber, mas de expressar o sentimento que não pode deixar de ser expresso naquele momento. A criação estética é, ao mesmo tempo, a vontade do artista em construir, mas é mais do que isto. É um desejo inexorável que está dentro e que precisa sair. Eu não me arrependo. Mas não gostaria de passar por tudo aquilo mais vez. Só me arrependo dos beijos de amor que eu não roubei”, brincou.